quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Classe média - uma questão de classe

Portinari

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Classe média - uma questão de classe


Sempre havia me incomodado a situação dos pobres. São jogados em morros, deixados sem água, esgoto, transporte público, menos eletricidade, pois esse faz a TV funcionar. Não vou te dizer que não assisto TV, mas é muito raramente, no máximo uma vez por semana, isso quando passa algo que me interessa no canal educativo. Geralmente me interesso por história. Bem, voltando aos pobres, os empurram para situações desconfortáveis, o fazem trabalhar exaustivamente, consomem seu suor e seu sangue, os chamam de vagabundos e fedidos. Chamar alguém de fedido depois do o colocar para trabalhar embaixo de um sol de verão ao meio dia te castigando é muito simples. Sabe o que tem de mais incomodo nisso tudo? Cem anos atrás os pobres ainda eram jogados nas favelas, daqui a cem anos continuarão sendo jogados. Senão em favelas, provavelmente em becos, buracos, depósitos, fábricas e qualquer lugar onde eles couberem. É nesse descaso com os pobres que eu entro, nunca dei muito valor para essa coisa chamada alta sociedade. Lembro certa vez que um estudioso em filosofia havia me dito algo sobre Immanuel Kant, era sobre a etiqueta, sobre a civilização e principalmente tudo isso reflete em sociedade, nossos gestos treinados, nossa postura, nossa educação, tudo isso não passa de uma coisa falsa que criamos. A arte a ciência é algo que inventamos, nos enganamos com todas essas coisas, simplesmente para nos sentirmos humanos, superiores a todo o resto. Queremos Deus não porque ele é bom, mas sim para estarmos do lado dele, assim como Jesus está.

Alias sobre Kant, tem coisas nele que muito me agradam. Não sei o quanto isso pode ser relevante, mas sempre que posso procuro saber sobre a vida pessoal do gênios “enganadores” que tenho certo respeito e admiro muito. Kant tinha uma rotina impecável, tinha uma certa riqueza que lhe dava uma condição de vida agradável. Sabemos que ele tinham um mordomo. E sua rotina era algo tão exato que diziam se poder ajustar o relógio a partir de seu passeio. Possuía um ritmo em perfeita sincronia com os minutos e segundos. Fora educado numa rígida educação. Kant viveu pelos idos de 1750, mais precisamente, nasceu em 1724 e morreu em 1804. Isso faz mais de cem anos. E faz mais de mil anos que os pobres são jogados a cada buraco que couberem. E acredito eu que durante toda a trajetória da humanidade sempre houveram seres humanos mais sensíveis e indecisos sobre coisas da vida que os outros. São desde sempre comparados a uma peça defeituosa. Muito depois de 2000 eles ainda continuam a existir, sobrevivendo entre toda aquela enganação e pobreza, tudo fruto de uma coisa colocada num pedestal, coisa essa chamada sociedade. E a sociedade é uma puta, e das mais vadias.

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Fazia um frio gostoso, frio o suficiente para se usar um simples moletom por cima de uma camiseta. Usava calças Jeans justas, eram mais descoladas assim. Tênis com cano médio e para quem tem pés finos. Adorava se vestir assim. Já anoitecia, dava para ver a cor amarela, avermelhada do sol tingindo todo o céu e a cidade. Pedro estava com mais um amigo, Felipe, no terraço de um prédio abandonado. Era um prédio construído pela metade, só havia o esqueleto. Lá de cima dava para ver a cidade. Esse seu amigo Felipe estava bolando um baseado. Tudo que Pedro fazia era olhar para a cidade. Tinha um medo medonho e até mesmo bizarro por altura. Esse mesmo medo se refletia em agulhas, tinha pavor dessas duas coisas. De resto parecia não temer mais nada. Aquele era o presente dos dois, Felipe querendo fumar seu cigarro e Pedro esperando anoitecer para poder ir para algum lugar. Esse era seu presente, era o futuro. O frio estava gostoso, era o começo do outono, era sexta-feira e ambos os dois tiveram uma semana terrível demais trabalhado sofridas oitos horas.

Felipe acendia seu cigarro:

- Quer uma bola Pedro?

- Não cara, tenho medo de ficar tonto e cair.

Felipe dá uma risadinha. Pedro nem dava bola, sabia que era só mais uma das suas manias loucas, mas que lhe enchiam os nervos até a ultima caso nenhuma delas pudessem ser feitas.

Ficaram os dois parados, pegando o vento no rosto, vendo o final da tarde:

- Já parasse para pensar para onde todas essas pessoas estão indo agora? – perguntava Pedro para Felipe enquanto observava o transito caótico que se formava neste horário.

- Sei que a maioria está correndo para casa, estão mais cansados que nós. Sei que vamos correr essa noite.

- Acho que assim que eu achar alguém eu vou estar junto a toda aquela massa, querendo ir para casa, apenas descansar. Só isso. Não vou para casa descansar porque eu não consigo enquanto eu não encontrar alguém.

- Mas homem ou mulher Pedro?

- Ainda não sei. Qualquer pessoa que me ame. Sempre tive quedas infernais por garotas de preto e pele branca. Homens não servem para nada. Sou bissexual porque sou tarado.

- Lembra aquela garota que você ficou semana passada?

- Lembro, que tem ela?

- Disse que tu deve ser ninfomaníaco.

- Impressão dela, provavelmente eu estava empolgado, só isso. Cara, ela tinha 14 anos. Estava indo naquela festa escondida dos pais, parecia que eu estava dando os primeiros beijos nela. Pelos menos eu estava sendo um dos primeiros da lista dela. E pelo jeito aquela lá vai ter uma lista extensa.

Os dois riram um bocado e se calaram. Felipe terminou seu baseado. Os dois desceram. Já estava praticamente escuro. Os relógios batiam 19Hrs, iriam agora até um mercado que existia lá perto comprar bebida. Bebiam álcool igual a camelos bebendo água.

O problema é que você podia beber socialmente, mas era pecado gostar de beber, falar que bebia por prazer. Assim como era pecado você dizer que não gostava de trabalhar. E quem gosta?

O mercado era enorme, chão todo branco. Era limpo ali:

- cara, lembro quando eu trabalhava de guia turístico ano passado. Os turistas vinham para cá e ficavam impressionados com a limpeza dos lugares por aqui, adoravam não ver favela alguma pela cidade. Eu me segurava toda vez para não pular no pescoço deles, bater a cabeça deles na parede ou no chão e berrar “QUEM VOCÊS ACHAM QUE LIMPAM ESSA CIDADE, SUBA UM MORRO SEM SANEAMENTO QUE VOCÊ VÊ QUEM LIMPA A TUA SUJEIRA”. – disse Pedro.

- Me irrita a idolatria dos turistas por essa cidade. Pior é quem mora aqui e acredita nessa enganação.

- O que falar, a maioria deles acredita no que é dito pela TV. O Jornal é dono da verdade. Fazem toda essa lavagem na mente das pessoas por meio de filmes de quinta categoria, com estrelas que não sabem atuar e estão na tela senão pela sua cara bonitinha. Engolem qualquer coisa que você vomitar para elas!

- Pior é quando você chega em casa e vê que seus irmãos e seus pais são essa gente. – Diz Felipe.

- Isso dói mesmo.

Andam para os fundos, era lá que ficava a cerveja gelada. Um segurança da um toque no rádio, e os dois começam a serem seguidos pelos seguranças. Os dois percebem, dão uma risada e acham graça.

- Pega as do fundo, essas são mais geladas – Falou Pedro.

- Aham, pode deixar. – Replicava Felipe enquanto pegava duas cervejas de meio litro do fundo da prateleira.

Os dois foram até o caixa pagar. Era sexta-feira e dava para sentir que o mercado estava mais agitado. Iriam hoje para o seu lugar favorito depois dos topos de prédios e as ruas escuras, a TVC 15, uma boate que parecia ser feita para os dois e as outras 50 pessoas que iam lá. No lugar em vez de tocar as músicas do momento, tocava aquela música que fazia eles se sentirem vivos. Abriram a cerveja e foram andando até lá:

- Sabe uma coisa que eu já percebi? – Falou Pedro – O quanto uma imagem compra as pessoas. Elas se iludem fácil. E o que mais me irrita nisso tudo é o fato de viverem me chamando de sonhador só porque eu não quero trabalhar numa fábrica ou escritório como eles acham certo. Definitivamente, isso acaba com meu fôlego.

- Imagem compra tudo, porque tu acha que as pessoas assistem mais televisão do que lêem? TV tem imagem. Lembramos mais de filmes do que de livros. Eu mesmo admito que preferiria escrever um filme e produzi-lo do que escrever e editar um livro. Penso eu pelo menos.

- Não estou muito longe disso.

Os dois se calam e tomam um gole longo. A continuam caminhando até chegarem a TVC 15. Dava para sentir a vibração da música vinda lá de dentro. Estava tocando Depeche Mode, Dreaming of Me no último volume! E você sabe como se dança músicas assim? Como é dançar com ódio de verdade? Um ódio tão grande que te dá vontade de chorar? Você apenas deixa a música te absorver, se ela te tocar vai fazer você tremer, ou se tiver sorte, sentir como se tivesse levado um soco e não consegui-se mais se mexer. Era por esse tipo de música que se buscava toda noite quando o ódio te tornava vulnerável. Não queria ouvir “música para dançar” como o pessoal gostava tanto de falar por aí. Queria músicas que fizessem eu me sentir vivo. Músicas para dançar são fáceis, o complicado é conseguir compor uma música que faça você se sentir vivo. Isso vai para além da música, deve ser para toda forma de arte, para quando se acorda de manhã. Seja lá o que, mas preciso me sentir vivo sempre que posso.

A TVC era pequena, tinha uma pequena pista para o pessoal dançar, e cantos com mesinhas para você tentar conversar e beber em paz, já que na pista sempre tem o risco de alguém derrubar a tua bebida.

Os dois entram, dão uma volta, procuram o seu amigo, Marcos. Ele geralmente tocava de DJ lá, mas hoje não tocaria. Marcos conhecia muitas pessoas, muitos amigos de Pedro e Felipe foram apresentados por Marcos. O viram e foram o cumprimentar. Só apertaram as mãos, Marcos estava conversando com um casal. Até onde se sabia era um casal bem aberto.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Jaleco Branco


Ilustro meu blog hoje com esta pintura de Cezanne.

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Jaleco Branco

I

Vestido normalmente com um jaleco branco por cima, finalmente saíra da fábrica. Havia escolhido a profissão em laboratório somente devido a carga horária diária, que era menor, 6 horas corridas em vez de nove horas jogadas fora todo dia, jogava fora somente seis. Fazia um calor dos diabos. Atravessa a rua, saía pouco depois das 13 horas, há uma calma monumental nessa hora, é impressionante. Do outro lado da rua fazia sombra, foi a passos rápidos para não perder o ônibus. Chegou ao ponto e ficou parado. Acima da rua viu o ônibus parado na sinaleira, esperando ela abrir. Olhou para o outro lado do muro, branco, e nele escrito em vermelho “Deus está morto”. Seu corpo tremeu, seu estômago ficou gelado e pareceu se fechar. Ficou frio.

O ônibus parou do seu lado, então entrou e passou o cartão. Maldito cartão, você comprava em dinheiro, e quando o valor do passe aumentava, você perdia dinheiro. Por isso sempre tinha pouco. Ao atravessar a catraca voltou a suar e sentir o calor infernal. Olha para o cobrador e pergunta “e o ar-condicionado, não ia ter ar-condicionado?”, ficava mais irritado com o calor. “era promessa de campanha, não tenho nada a ver com isso, reclama para o prefeito”, respondeu o cobrador fazendo careta. Foi para o fundo, não queria encontrar ninguém hoje, como de costume. Enquanto ia para o fundo daquele ônibus com 4 eixos articulados, viu o cobrador e o motorista resmungarem algo, falando mal de alguém, dele ou do prefeito que prometeu ar-condicionado e agora seu segundo mandato estava no fim, e nada de ar-condicionado nos ônibus.

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Chegou em casa, comeu a comida plastificada que sempre comia. Jogou as coisas na pia e ali deixou. Foi para o quarto olhou pela janela e foi ver TV. Trocava os canais e nada passava. Sempre lixo, o mais puro lixo. Demorou um pouco mais no canal em que aparecia uma mulher chorando. Deixou lá até o canal dar uma mininete para ela morar e um emprego. Como se a vida dela estivesse resolvida agora. Depois desligou e tentou ler o jornal e a revista que assinava. Novamente lixo. Havia cortado a TV paga, estava pensando em cancelar a revista e o jornal. Sua última namorada que gostava dessas coisas.

Tomou banho. Fez a janta, comeu, escovou os dentes, apagou tudo, deixou um breu. Mesmo assim entrava luz da rua. Olhou para a parede do prédio do outro lado da janela “merda de vista, quero ir embora”, e lembrou mais uma vez da frase que leu no muro, Deus está morto. Gelou o corpo. Perdeu um pouco do sono. Mas logo o cansaço o venceu e dormiu.

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Noutro dia saiu do trabalho. Olhou para a sinaleira, e não viu o ônibus. Olhou para o muro e viu que alguém havia passado tinta por cima da pichação e sobrava apenas a palavra “Deus”. Dava para ver que passaram cal por cima do resto, era nítido. Como era sexta-feira, e o calor ainda estava infernal, e em sua casa não queria o ar-condicionado ligado, pois o seu era velho e gastava muita energia, foi comer fora.

Foi até um dos setes shoppings center’s da cidade. Havia quatro lugares que vendiam hambúrguer e dois de comida mexicana. Ficou em dúvida entre os dois, até aparecer seu colega de laboratório:

- Opa, aproveitou a sexta-feira para vir gastar um pouquinho no Shopping? – ele tinha fama de pão-duro, talvez fosse mesmo, mas achava idiota ficar comprando mais coisas do que elas poderiam caber em sua casa.

- é, mais o menos, vim almoçar.

- é mesmo rapaz! Eu também, vamos comer um hambúrguer?

Olhou para aquele palhaço sorridente oferecendo uma comida que da câncer:

- Não, estava pensando na comida mexicana – deve dar câncer também, mas pelo menos não tem um desenho idiota me dizem que não – gosto de comida apimentada.

- okay, é bom variar um pouco – seu colega falou num tom de desapontamento.

A atendente estava com cara de tédio, mas mesmo assim mantinha um sorriso.

- Vou querer um taco vegetariano – ele disse para a atendente – e você?

- Eu quero um taco também, mas o de filé com bacon – falou seu colega dando uma piscadinha nos olhos, como se ele fosse durão por comer carne e ele não.

Pegaram e pagaram, por fim se sentaram.

Desembrulharam toda a comida, “o legal é que é como se fosse presente”, disse o seu colega a respeito do embrulho nas comidas fast-food:

- Você já havia comido comida mexicana antes? – eu pergunto.

- Sim, mas só uma vez, geralmente como hambúrguer. Até que não é ruim. – dá uma mordiscada no taco, fica com a boca cheia, mastiga três vezes e engole – escuta, porquê você não come carne?

- Eu sou adventista, não como carne.

- Mas eu conheço adventistas que comem carne...

- Sim, se você quiser comer, coma, eu não quero.

- Nossa não sei como você consegue viver sem carne, vai comer o quê?

O detalhe é que ambos comiam o mesmo lanche, a diferença é que um simplesmente não tinha carne, de resto era igual.

Terminaram o almoço. Seu colega iria passar na loja de artigos esportivos (mesmo sendo um sujeito sedentário) e depois na agência de viagens para dar uma olhada nos pacotes, mesmo não sabendo que o México também faz parte da América do Norte, e faz fronteira com os EUA, chamando os estadounidenses de norte americanos. “okay, vou indo para casa”, disse o cumprimentando, “certo, até segunda hein, e se cuida”, nem me dei o trabalho de responder, apenas dei um abano. Na verdade não iria para casa, só iria sair daquele antro.

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Desceu pelas escadas rolantes e foi andando em direção a igreja. Era a igreja mais antiga da sua cidade, era enorme e tinha o teto alto, “lá deve ser mais fresco” ele pensou.

Ao entrar na igreja viu uma cruz enorme com um Jesus Cristo agonizante, lembrou-se da frase “Deus está morto”, gelou seu corpo. Ficou aflito por pensar aquilo num lugar sagrado, mesmo sendo adventista e a igreja católica, igreja sempre era uma igreja. Sentiu-se culpado, queria morrer, penitência. Entrou no confessionário, o padre havia dito algo, não lembrava o quê, não prestou atenção. Ficou em silêncio e o padre disse:

- Fale, confesse seus pecados para mim.

Pensou em muitas coisas ao mesmo tempo, em especial na fantasia que teve horas mais tarde com a secretária do laboratório, mas somente uma palavra saiu de sua boca:

- Deus está morto!

Falou assustado. Viu pela tela a cara do padre fazer careta.

- Todos somos amados pelo senhor – respondeu o padre falando feito um robô.

Queria responder algo, pedir desculpas talvez:

- Deus está morto! – Ficou mais assustado ainda, só conseguia falar isso. Decidiu-se por sair dali, a passos apertados.

Desceu as escadas da igreja (estas não eram rolantes) e foi andando pela rua. Depois de alguns minutos, quando seu campo de visão não dava mais para a igreja, se acalmou. “E se Deus quiser me matar?”, ele pensou. “Mas eu não tenho culpa, mas mesmo assim é pecado... como posso pecar por algo que não tenho culpa?”. Como quem pisa em nuvens entrou numa loja que era num porão, o lugar fedia a mofo, cheiro de papel velho, o apartamento de seus pais tinha esse cheiro. Olhou ao redor e viu várias capas coloridas “amostras técnicas de laboratório velhas?”, foi a primeira coisa que veio em sua mente. Tentou encostar numa dessas coisas coloridas, mas ficou com medo, algumas eram um pouco ásperas. Olhou um velhinho rindo:

- pode pegar, os livros não mordem não meu filho, hehehe – diz o velho risonho.

Livros? Eles nunca foram assim. Durante os tempos de estudo e no laboratório pegava livros, mas eles eram uma chapa eletrônica e dobrável, onde depositávamos os dados levantados com auxilio do computador.

- Ah, já sei – falava o velhinho abrindo um sorriso – você nunca viu um desses, já vi pela sua cara, você é muito novo, não conheceu os livros de papel. Hoje tudo que eu tenho aqui cabe num troço do tamanho de uma folha A4. Impressionante por um lado, mas por outro, muitos livros só continuaram existindo no papel. Resolvi juntar alguns e vender para as pessoas que se lembram como eles eram. – o senhor fica olhando fixamente por entre seus óculos o nosso homem de laboratório, e continua a falar, não devia ir muita gente ali mesmo – bem, mas chega de papo e vamos aos negócios, você procura algo?

- Deus está morto...

Ele fala instintivamente, já conseguia controlar sua fala. Ficou calado de medo pensando que aquele homem velho iria o chutar daquele lugar por falar tal coisa:

- Nietzsche? Adoro Nietzsche, não se fazem mais filósofos como antigamente, agora só se fala em auto-ajuda para cá, auto-ajuda para lá. Algum livro em especial dele?

Nietzsche? Nunca ouvira falar dele... porque será? Bem, melhor investigar isso depois, parece que este velhinho poderia lhe ajudar, e esse tal de nitê-sei lá o quê, tem alguma coisa relacionada com essa frase que tanto o persegue:

- não sei meu senhor, qual você recomenda?

- Deixe-me ver – e o senhor enfiou-se naquele mar de prateleiras com capas coloridas – estes aqui talvez possam lhe ajudar. O velho depositou três livros por sobre o balcão, na capa o nome dos três: O Anticristo, Ecce Homo e Textos escolhidos.

Ele olhou os três, ficou com medo, gelou ao ler Anticristo e novamente em ler ecce homo (mesmo não sabendo o que aquilo significava), ficou com vontade de correr ao ver a foto daquele homem bigodudo e cara de louco. Apesar de tudo não correu, sua curiosidade era maior. O dono da loja percebeu a indecisão e sugeriu:

- O Anticristo talvez lhe ajude nessa sua dúvida, mesmo não sendo seu melhor livro... Você nunca leu Nietzsche? – ele respondeu positivamente com a cabeça – Então vou pegar algo especial para você.

Novamente ele foi para dentro das estantes, resmungou alguma coisa para os livros, encontrou um, depois o outro e voltou:

- Aqui, estes dois podem te ajudar bastante – pega um com uma foto do tal sujeito de nome difícil, mas com um bigode menor – este tem algum material introdutório, e este, este aqui talvez seja o que você está tanto procurando – e aquelas mãos frágeis ergueram um pequeno exemplar de “A Gaia e a Ciência”.

- E com o que você se sustenta, qual o seu trabalho?

- Eu trabalho em um laboratório de analise técnica.

- Então você vai adorar esse livro, hehehe.

Ele paga pelos dois livros – Gaia e a ciência & conhecendo Nietzsche -, os põem numa sacola e pega o metrô de volta para casa, escondendo os livros, pois não queria que ninguém visse aquilo, e talvez pudesse brigar com ele ou xingá-lo.

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Toca a campainha do apartamento. Sua mãe abre a porta com um sorriso, avental e uma toalha de cozinha sobre os ombros, “opa, olha quem veio”, disse ela. Seu pai da um resmungo da sala, assistia um programa sobre carros, adorava motor. Foi até seu pai o cumprimentar pela aposentadoria, ontem havia sido seu último dia no trabalho:

- Tudo bem pai?

- Sim, estou vendo este carro Suíço, chega a 450 Km/h em 17 segundos, é incrível. Mas não se pode comprá-lo ainda, pois é apenas experimental.

- Como se o senhor pude-se comprar mesmo.

- é – o pai responde com pesar.

- E como foi seu último dia?

- Normal, só que tive que passar para o pessoal o que eu estava fazendo.

Eles olham para o que passava na tevê, era um carro a turbina de avião. Um modelo antigo não muito seguro, era a parte histórica do programa:

- Pai, você lembra dos livros de papel?

- Sim porque?

- Nada, é que eu apenas não me recordava deles, e ontem encontrei uma loja cheia deles.

- Ah, sim, eles foram completamente substituídos logo depois que você nasceu, não lembro bem quando. Você não chegou a ver eles em idade o suficiente para lembrar, eu acho...

- Mas porque os substituíram?

- Ora porque, pois é a evolução da tecnologia, isso acontece!

- Mas foram reeditados todos os livros?

- Não sei, acho que reeditaram apenas os necessários, os outros foram deixados a cargo da iniciativa privada.

- é, achei eles interresantes, comprei alguns para mim.

- há! Perca de tempo meu filho.

Sua mãe os chama para o almoço.

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Saiu da casa de seus pais pensativo sobre o tratamento de seu pai sobre os livros, era como se houvesse chegado uma nova moda, chegou uma nova tecnologia. Quais livros e porque tais livros foram deixados de lado? Como definimos algo útil e outro algo inútil? Necessário e desnecessário? Somado a tudo isso a frase “Deus está morto”, que já não lhe gelava mais o estômago, e aqueles livros fedidos que ele comprou, com um sujeito com cara de louco estampada na capa.

Viu uma farmácia de pílulas de viver bem. Parou de fronte a loja, toda branca, igual seu laboratório onde trabalhava, e olhou as pessoas entrando e saindo, nunca cheio, mas sempre com movimento no lugar. Entrou, olhou por entre as prateleiras: estimulante sexual, pontencializador de prazer, pílula engana tosse, pílulas de regime (que davam a sensação de uma refeição), preservativos recicláveis e reutilizáveis, pílulas para dor de cabeça e aquilo que talvez ele procurava: pílula dos sonhos. Pegou uma cartela que vinha com quatro. Passou no caixa, pagou e levou.

Chegou em seu apartamento, olhou os livros colocados por cima do sofá, ligou o ar-condicionado, já que sempre fazia muito calor. Foi até a cozinha, tomou duas pílulas como indicava a bula, arrumou sua cama para deitar. Resolveu começar a ler o tal de “A Gaia e a Ciência” e começa a ler. Logo pega no sono, efeito da pílula.

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Era a aula de religião, todos faziam silêncio para ouvir as verdades da professora. Estavam sentados em círculo, todos podiam ver todos. Estava um pouco escuro, sua professora terminou a chamada com seu nome, guardou o diário e se pôs a falar:

- Está escrito na bíblia que o homem foi feito para a mulher e a mulher para o homem. Fugir disso é pecado. Deus é amor, ele quer o melhor para vocês. Roubar é pecado, um terrível pecado! E eu sei meus queridos, que dá vontade, mas este é o satanás no influenciando, falando em nosso ouvido...

- Professora, o diabo pode ouvir nossos pensamentos? – Pergunta um coleginha seu.

- Não, porém ele pode influenciar nosso pensamento.

- Mas professora como eu vou saber quando o que eu penso é algo do belzebu, ou de Deus? – Pergunta uma menininha, por quem nosso herói era apaixonado na época.

- Está escrito, Deus, deixou um guia para nós usarmos. Quando tivermos alguma dúvida, é aqui que devemos consultar. Assim evitamos pecar.

- Professora, se eu peco eu não vou para o céu? – novamente pergunta o menininha.

- Se você pecar e se arrepender, seu pecado é absolvido. O importante é se arrepender se seu pecado.

- Professora, mas e quando eu penso algo não é pecado né? – pergunta um menino sentado bem perto da professora.

- Mas é claro que é pecado, gente o pensamento também é pecado! Pois o pensamento leva ao ato, e o pensamento pode ser influenciado pelo diabo!

Como que todo o lugar entra em choque, virando tudo um lugar escuro, e nosso infante herói fala, “como eu posso controlar o meu pensamento?”.

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Acorda suado, mesmo com seu ar-condicionado ligado. Toca a parede se sua casa, e percebe que ela está quente, olha para o relógio, já era meio-dia de domingo. Dormiu demais devido as pílulas. Senta na borda da cama de casal. Fica pensativo sobre o sonho. Era semelhante ao que havia acontecido certa vez quando era pequeno, só que nunca havia indagado ninguém sobre a questão do pensamento como pecado. Mesmo assim, só de pensar nisso, já sentia seu estômago gelar. Quando pensou, “mas como controlar o que eu penso? Como posso pecar sobre algo que não tenho controle, é como ser culpado pelo crime dos outros, sobre os quais você não tem controle...” Seu estômago fica gelado e pesado.

Por sobre o criado mudo de inox, vê o livro do sujeito de bigode: Nietzsche, como um espirro, pensou. Deve ser por causa da leitura desse sujeito que quis matar Deus... Meu sonho foi para me alertar do perigo que pode ser a influência do capeta em meus pensamentos..., mas ainda assim, como eu poderia controlá-los?

Fechou o exemplar de Gaia, e pega o “conhecendo”. O abre. Começa a folhar aquele papel áspero, o cheiro forte vindo do livro velho. Começa a ler. Leu que ele estudara Teologia, “porque?”, mas depois largara ela. Na verdade ele largou tudo assim que pode e foi morar nas montanhas. Pelo que parece assim ele não sofreria influência do mundo externo, que Friedrich dava aula já aos 24 anos (mesmo que seu professor tinha 20 quando ele estava nos dois anos e meio da faculdade). Leu coisas e mais coisas sobre a vida daquele sujeito, mas ao chegar na parte de falar sobre as suas idéias, ele não entendia nada. Parecia que ele falava outra língua. Tentara mais um pouco, mas não conseguira absorver nada. Terminava um página e tentava lembrar sobre o que ele havia lido, mas não conseguia. Por fim desistiu. Decidiu-se por no outro dia, voltar até a loja onde comprara os dois livros, e pedir reembolso, ficou com raiva. Ele sabia que não era burro, tinha curso superior e uma especialização, fora a escola ficou cinco anos na faculdade, trabalhava a três no laboratório. Esse sujeito do livro e o dono da loja é que devem ser burros, não falam nada com nada... Bem que meu pai tinha razão, só atualizaram o que valia a pena ser lido.

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Chegou no trabalho as sete da manhã como de costume. Joyce a secretária estava lá já. Ela ficava das seis à seis, a maior parte do pessoal fazia esse horário, menos o pessoal do laboratório, já que é um emprego de alto risco, precisam estar sempre bem descansados. Deu oi para ela, que lhe devolveu com um sorriso. Foi pegar o café que ficava na mesa dela e começou a puxar assunto:

- E como foi o seu final de semana Joyce?

- Bem, deu para descansar. Dormi o domingo todo. Não pensei duas vezes, passei na farmácia, peguei um coquetel de pílulas e fui aproveitar!

- Nossa que bom – só agora percebeu a mediocridade que era aquilo, mesmo tendo feito isto também, aquelas singelas coisas que fez o deixaram com idéias na cabeça.

Já havia batido o cartão, mas entrou logo para cumprir as metas da empresa. Ao entrar fica paralisado na porta, só agora havia percebido o quanto o lugar era branco e sem cheiro. Olhou para as mãos e estas também eram brancas devido a luva, que imitava toda a roupa. Foi para sua mesa e pegou a planilha de dados que já haviam deixado por sobre a mesa, “graças a Deus conhecimento de verdade”, ele pensou, “ciência da mais alta beleza, a pura técnica em ação, é isto que nos diferencia dos animais”. Olhou para aqueles dados, e depois de algum tempo os contemplando, chegou a conclusão que; se aqueles livros não lhe diziam nada, aquele laboratório muito menos. Olhou ao redor, todos iguais a ele, não dava para saber quem é quem a não ser pelos crachás. Viu que todos estavam de cabeça baixa. Fixou os olhos em sua mesa, analisando cada espaço, nunca havia feito aquilo. Percebeu então que aquilo ali era um tédio, que não gostava mais daquilo tudo, que aquilo era só um emprego. Perdeu instantaneamente todo o prazer que sentia no seu trabalho.

Viu o supervisor vindo e começou a se mexer, a trabalhar. Quando ele passou, jogou um olhar de ódio, como se fosse um bruxo e estivesse lhe rogando uma praga. Percebeu que todos abriam caminho para o supervisor e abaixavam ainda mais suas cabeças... Ficou irritado com o supervisor, com o livro do qual não entendia nada, com Joyce por ser gostosa, pelo seu colega ter aparecido no seu almoço, por seu pai já ser aposentado, até do padre sentia raiva, mas principalmente sentia raiva de estar ali, e de Deus por estar condenando agora todo seu pensamento de ódio.

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Apesar de fazer suas seis horas corridas, tinham direito a uma pausa de quinze minutos, para lanchar. Ele estava se preparando para sair, e aquele mesmo colega do almoço de sexta-feira, o sedentário esportista, se intrometeu e decidiu ir fazer a pausa junto com ele “espera aí amigão, vamos fazer a pausa juntos”, não se deu ao trabalho de responder. Saíram do laboratório, e foram para o refeitório, cada um pegou um pão natural. Sentaram-se um de fronte ao outro. Nosso herói começou a comer, e seu colega imitou. Até o momento que o supervisor passou por entre eles, com sua careca, e sentiram vergonha por estarem comendo aquele pão:

- sabe o que eu andei percebendo? – nosso herói sussurra para seu colega.

- o que? – Diz o colega inclinando-se para a frente.

- Que nós abaixamos mais ainda a cabeça quando o supervisor passa por nós, e que sempre estamos de cabeça baixa aqui dentro.

Nosso amigo sedentário olha panoramicamente pelo refeitório com todas aquelas cabeças baixas, e o supervisor passando por entre eles, e as pessoas se retraindo ainda mais.

- Não, deve ser impressão sua...

- É? Mas eles estão de cabeça baixa ou não estão?

- Estão, mas é porque estão comendo.

- E quando andam – nesse momento um funcionário se levanta, leva sua louça para o lugar da louça suja e sai andando, fazendo todo o trajeto de cabeça baixa – assim, de cabeça baixa, que não estão comendo?

- É concentração para o trabalho... essas pessoas gostam do seu serviço, assim como nós!

O sujeito simplesmente não queria admitir que as pessoas andavam de cabeça baixa. Todas estavam pensativas ou concentradas:

- Como seu final de semana Jorge?

- bem, copulei com minha mulher sexta-feira depois de voltar do shopping e ela chegar do trabalho, sábado tomamos um coquetel de pílulas de bons sonhos e domingo aproveitamos a programação especial da televisão.

- Você já percebeu que todo mundo, pelo menos duas vezes por mês toma algum tipo de pílula? Já viu também, que todo final de semana fazem uma programação especial?

- Ora Deus do céu! Eles anunciaram que é uma programação especial, Betty brigou com o Benn, foi um episódio inédito. E qual mal há em tomar umas pílulas para relaxar algumas vezes...

Jorge encarou nosso “herói” com raiva, como se ele fosse um professor e dissera na frente de todos que Jorge estava errado:

- você não está falando nada com nada, deve ter sido porque sua ex te deixou. – terminou dando uma risadinha, pois Jorge era casado.

Isso só aumentou o sorriso bobo e sarcástico de meu personagem, que recolheu tudo e foi embora. Jorge o seguiu nos atos.

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Na saída do trabalho Jorge o acompanhou, foi com ele até o ponto de ônibus. Ele apontou para o muro do outro lado da rua onde estava escrito Deus, e falou para Jorge:

- Sabe o que estava escrito ali? – apontando para a palavra Deus.

- Não sei, Deus?

- Depois de Deus estava escrito “está morto”, entendeu?

Instintivamente Jorge responde:

- Não entendi a relação... não mesmo – e encarava a palavra Deus.

- Antes estava escrito Deus está morto! – Falou bravo.

Jorge arregala os olhos, fica paralisado, visivelmente desapontado.

- Sim eu sei, gela o nosso estômago, mas depois você se acostuma a pensar sobre isso.

Jorge continuava calado, pensativo. Lá no horizonte vinha o ônibus, parado na sinaleira:

- Você vai pegar esse Jorge.

Jorge faz que sim com a cabeça.

O ônibus chega, passam o cartão e entram. Fazia um calor dos diabos. Vão para o fundo da condução, encontram a assento e sentam:

- Sabe o que eu estava pensando hoje durante o trabalho?

- O que? – Jorge responde sem deixar de olhar para frente.

- Você tem o mesmo grau de ensino que eu não é mesmo?

Responde que sim.

- Somos uma exceção na sociedade, temos graduação e pós-graduação, somos o que se chama de inteligente, não é mesmo? Por isso temos bons empregos.

Jorge não responde, apenas fica pensativo.

- Mas hoje eu percebi, além daquelas coisas que te disse no refeitório, que tudo o que fazemos não passa de comparar tabelas, para isso que estudamos tanto, comparar tabelas. Esses dias por um acaso, na verdade na sexta-feira passada, após sair do shopping não fui para casa como lhe disse; fui para uma igreja, não sei porque. Apesar de’u ser adventista entrei numa igreja católica e quis me confessar, quando entrei no confessionário senti um peso sobre mim, e adivinhe o que eu falei para o padre – ele se inclina ao ouvido de Jorge para cochichar – “Deus está morto”. Eu só estava conseguindo dizer aquilo, não me saiam outras palavras da boca. Fiquei assustado de dizer aquilo numa igreja, Deus poderia ficar com raiva de mim e me matar por dizer tamanha blasfêmia. Corri dali até minha vista não conseguir mais olhar para aquela Igreja. Encontrei uma loja podre, com cheiro de mofo cheia de capas coloridas e ásperas, sabe o que era tudo aquilo? – espera um tempo olhando para Jorge, que apesar de não olhar fixamente ao personagem, demonstrava prestar interesse – Eram livros, livros Jorge! Você sabia que eles eram de papel? Havia livros e mais livros naquele lugar! Falei para o sujeito a tal frase que ainda deve estar em sua cabeça, e ele me indicou dois livros, que instintivamente comprei. Não sei porque comprei, esta frase estava me dando medo, e havia uma foto do sujeito na capa, cara de insano e de um bigode de dar medo! Mesmo assim comprei. Fiquei com medo que me vissem com aqueles livros, demorei um pouco para lê-los. Li muito pouco deles na verdade, não sei porque aqueles livros antigos escrevem coisas tão grandes que as pessoas não conseguem ler. Mas enfim, li. E sabe o que eu entendi daquilo tudo? Nada, absolutamente nada, palavra alguma, me senti o mais completo idiota, um imbecil total. Primeiro fiquei com raiva do livro, que ainda estava no papel por ser insignificante, nem escrito direito ele estava. Mas sabe o que mais me atordoa, só depois de ler tudo aquilo é que eu percebi uma porção de coisas. Mesmo não entendendo palavra alguma daqueles dois livros...

Ambos ficam em silêncio, estavam perto do terminal, onde deveriam correr logo para não perderem suas conduções que os levariam para casa. Antes de se separarem, ele termina seu discurso para Jorge:

- E sabe o que me veio a cabeça também? Porque eu defendi tanto a minha fé em Deus, se nunca parei para ler a bíblia? Como posso defender algo do qual eu não conheço?

- Não sei, tudo isso é muito confuso... Isso é tudo coisa da sua imaginação, vou te indicar para um psicólogo, eu também estava pensando em algumas coisas assim uma vez, falei sobre isso com minha mulher e ela me levou ao médico de mentes... estava tudo bem até agora.

Não se despedem, apenas olham para o relógio, os dois ônibus saiam ao mesmo horário, não deram comprimentos de despedida um ao outro, simplesmente foram.

**------**

Chega em casa cansado, olha o relógio, vê que eram 14 horas em ponto quando chegou. Sua mulher só chegaria as dezenove horas. Foi até a cozinha, preparou um café. Enquanto esperava a água ferver olhou pela janela, havia um parquinho para crianças do outro lado da rua, espremido entre prédios. Vê aquelas crianças brincando, “da última vez foi por causa delas”, e percebeu que comparando o movimento daquelas crianças ao movimento dos transeuntes adultos na rua, os adultos parecia robôs. Não tinha uma alma que parava para olhar as crianças. Jorge sentiu saudade de sua infância. Tentou lembrar dela, mas não conseguiu. Passou o café e o tomou, todos os 500ml de café.

Foi até o banheiro, olhou para os comprimidos que sobraram da última vez, os encarou, leu o rótulo, mas se decidiu por fechar aquilo.

Lembrou da morte de sua avó. Fazia mais de cinco anos que ela comia a terra. De herança ela havia lhe deixado uma bíblia, uma bíblia de papel. Foi para seu quarto e de sua esposa. Olhou embaixo da cama, nada, olhou nas gavetas dos criados-mudos e da penteadeira, e nada encontrou naquelas gavetas de inox e plástico. Vasculhou o armário, e novamente nada. Foi para a sala e viu por trás da estante da TV algo. SE agachou e viu que era áspero. Pegou aquilo e cheirou, tinha cheiro, cheiro de coisa velha. Leu a capa e estava escrito “bíblia”. Ficou desanimado por a ter achado, que faria agora? Abriu o livro aleatoriamente, e leu:” Sim, hoje minha queixa é uma revolta”. Droga! O que isso queria dizer? Jorge percebeu que seu colega estava além de ansioso com as descobertas, estava revoltado. Será que era isso? Ficou pensando, deu uma olhada naquele livro, não conseguia parar de cheira-lo, ele tinha cheiro. Depois tentou ler algo, mas não conseguiu ler muito, então se rendeu a televisão. Também não queria saber de nada que passava ali. Decidiu-se por ir dormir.

Acordou com um barulho vindo da cozinha. Levantou-se, já estava escuro. Foi lá e viu que era sua mulher cozinhando:

- Bom dia dorminhoco, queria te fazer uma surpresa. Sua esposa fritava hambúrgueres, Jorge adorava hambúrgueres. Sente o cheiro da carne, fica com fome, sente o cheiro de sua esposa e sente uma vontade nova. Dá um beijo no pescoço de sua esposa, amassa sua bunda com a mão, a passa pelo corpo todo. Fica com uma vontade de transar como nunca sentiu. Desliga o forno, “ei” sua esposa faz. Jorge a pega pela cintura, e a leva para a cama. Ele começa a se despir, sente uma vontade de tirar toda a roupa, geralmente só tiravam as calças. Sua mulher só tira as calças, olha para Jorge e diz:

- Meu Deus querido, ponha essa camiseta de volta, não somos animais, pelo amor de Deus!

Jorge não responde palavra alguma, apenas desabotoa a blusa de sua esposa, e a deixa nua, a joga na cama, ela abre as pernas, Jorge penetra. Começa a fazer, mas sente uma vontade súbita de mudar de posição. Simplesmente gira sua esposa e começam a fazer de quatro. Sua esposa da uma gemida rápida e discreta. Era a primeira vez que faziam uma posição diferente e sem toda a roupa. Só em alguns filmes pornô faziam isso, mas era uma categoria separada e considerada um tanto quanto nojenta, coisa de paises não civilizados – já que lá eram produzidos estas categorias de filmes.

Ao terminar Jorge olha sua esposa e percebe que somente agora sentia realmente a amar.

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Ele chega em casa pontualmente as 14 horas. Vai até a cozinha e prepara um lanche rápido. Não queria uma daquelas refeições prontas com gosto de plástico. Esquenta a comida e come. Deixa a louça suja na pia. Vai até a sala, liga a Tevê, passa por alguns canais, não vê nada, nem ninguém chorando. Desliga, “e eu pagava para ter lixo”, olha para a pilha de revistas que assinava no canto da sala, ao lado do sofá, e se lembra dos livros que comprou. Pega o Gaia, o cheira, sente o cheiro do papel. Resolve o abrir para começar a ler, quando o seu telefone toca. Atende, era sua mãe:

-Filho, você pode vir até o hospital central? Seu pai não está nada bem.

- Okay mãe estou indo!

Ele sai preocupado, sua mãe estava chorosa ao telefone. Desce até a garagem, pega seu carro, não gostava de dirigir, mas o tinha, pois era prático. Vai o mais rápido possível até o hospital.

Vai ao balcão de informações, dá o nome de seu pai, lhe indicam onde ele está, era um quarto de internação, vai direto para lá.

Quarto 303, bate na porta e a abre. Vê a sua mãe um pouco mais calma, mas ainda claramente aflita, sentada ao lado de seu pai. Olha seu pai, ele estava com tubos nas veias e um aparelho que ajudava a respirar. Olhando tudo aquilo, pega na mão de seu pai e pergunta:

- Está tudo bem pai?

- Agora está meu filho, estou bom já.

- Quem bom pai, fico feliz, te disseram quanto tempo ficará ai?

- Bem, falaram que como sou aposentado ficarei até melhorar, perguntei quanto tempo iria demorar, e responderam que dois dias no máximo.

- Acho que menos, seu pai sempre foi um homem tão forte – responde sua mãe.

Ele fica pensativo, olha seu pai daquele jeito, sente pena:

- Pai, como o senhor veio para aqui?

- Ele tomou um vidro de pílulas bons sonhos e para dor de cabeça, misturou isto tudo com café que já era misturado com uísque. – Olha para seu esposo com olhar de reprovação.

- Mas o que eu iria fazer? – seu pai entra com o recurso para a sua defesa – eu me sentia um completo inútil, não sentia mais utilidade em minha vida. Estava chateado. Antes eu via todo mundo no meu emprego, as pessoas me elogiavam. Me sentia mais feliz, valorizava muito mais a minha folga, por isso gostava tanto dela, agora eu fico em casa, não fazendo nada, apenas trocando os canais da televisão. Me sinto tão... tão... incapaz, sem objetivo.

Foi ai que eu percebi claramente que meu pai dependia daquele emprego, que era como uma droga que deram a ele durante anos, e agora ele simplesmente não sabia o que iria fazer. Ficou calado, se falasse algo poderia deixar seu pai mais depressivo ainda. Ficaram todos calados apenas pensando, até que uma estridente risada na televisão do quarto (que estava ligada) os traz de volta a aquela realidade.

**------**

II

Ao sair do hospital não conseguia parar de pensar em seu pai, a dor que ele sentia por não ver mais sentido em sua vida sem trabalhar. Isso o incomodava. Andava a pé pelo centro, sentia o calor vindo do chão, era energia acumulada de um dia inteiro em um concreto castigado pelo sol. Cabisbaixo, porém com uma sensibilidade que nunca o havia tocado antes. Notou que haviam prédios que nunca tinha visto, mesmo passando por aquelas ruas desde sua infância. Percebeu a rotina das pessoas que moravam nos apartamentos que ali haviam, as senhoras que levavam seus mascotes para urinar e cagar tudo, já que não havia espaço nos apartamentos. Olhou todos aqueles apartamentos com as luzes nas janelas de todo aquele pessoal ali chegando em casa levando o cachorro com problemas de ansiedade para passear, e funcionários concluindo um daqueles trabalhos urgentes, até altas horas, “que droga”, pensava sobre o pessoal no escritório.

Ao mesmo tempo que pensava em tudo, não pensava em nada, apenas sentia o sereno fresco caindo do céu, o e ar quente subindo do chão. Olhou para o céu e não conseguiu ver uma estrela, “quando que vi um céu estrelado, me lembro que vi uma vez”, ficou desapontado com a falta de estrelas. Pegou um trem e voltou para casa, precisava dormir, já que amanhã teria que trabalhar. Antes passou pela loja dos livros para ver se estava aberta, passou pela frente e percebeu que não tinha letreiro ali, viu a porta de metal fechada. Fez careta e foi embora buscar seu carro.

*------*

Eram dois minutos para as 14 horas, o sol estava castigando como sempre, escorria suor pelo pescoço. Abre a porta da entrada de seu prédio, que não tinha quintal, como praticamente todos os prédios que não eram da alta sociedade. Ouve um barulho vindo do outro lado da rua. Olha para uma porta de onde vinha todo o barulho e por cima da porta uma placa onde estava escrito: “Igreja do fim do mundo dos aflitos”. Estranhou por nunca ter visto aquela igreja ali. Ou quem sabe, somente agora prestara atenção e a viu, ou era tão recente que não teve tempo de percebê-la. Resolveu entrar, na verdade ficou na beirada da porta. Viu um sujeito vestido de roupa de escritório, e percebeu que todos os outros homens também estavam vestidos assim, até as crianças. As mulheres estavam todas de vestido, só mudando a cor e os detalhes, como no caso dos homens, e as crianças também vestiam a mesma roupa. Lá na frente viu e ouviu o pastor falando. Ficou olhando todo o show que acontecia ali, a entonação que ele fazia e tudo o mais. Eles levantavam o braço constantemente. Viu que se formava uma bela pizza no sovaco do pastor. Estava um calor tremendo ali, como fazia em todo o país, mas mesmo assim todos ali (até as crianças) utilizavam calça e camisa de manga comprida. Percebeu então que todos estavam suados devido ao tremendo calor que, naturalmente, se fazia ali. Saiu pois estava faminto e morrendo de calor.

*------*

- Sabe o que eu descobri que tem na frente do meu prédio ontem? – indaga esta questão a Jorge – Uma igreja, uma dessas igrejas novas sabe?

- Hum, sei, minha mulher está começando a ir numa dessas.

- Sério? Há! – ambos sentiram um pouco de graça nisso tudo – E sabe o que eu percebi ontem?

- fale...

- Que apesar de fazer todo um calor terrível como sempre faz, eles usavam calças e manga comprida, e sabe o que eu só percebi depois? Que o pastor usava uma roupa dessas, e que só ele falava.

- Sim, e que tem tudo isso? Uma missa é assim ora bolas!

- É, eu sei, mas talvez aí esteja o problema – ambos se inclinam para frente, já que estavam sentados um de cada lado da mesa, e cochicham – se só o pastor ou padre fala, não se pode contestar o que ele está falando, simplesmente se cala e se aceita. Me preocupei depois que percebi que todos estavam usando a mesma roupa, só mudando as cores, pois isso significa que imitavam o pastor.

Jorge balança a cabeça em sinal de compreensão, e terminam de comer seu lanche. Ainda de boca cheia enquanto mastigavam ele dá um toque em Jorge e aponta para o supervisor. Os dois ficam olhando e riem de seus colegas que instintivamente abaixam a cabeça, e os dois se esquecem que antes também a abaixavam.

*------*

Havia marcado com Jorge para almoçarem juntos e depois ir na livraria. Glauber chegou antes e foi falar com Joyce:

- Oi Joyce, trabalhando muito.

Ela estava na frente de uma tela, com sua cara absorvendo parte da cor exalada pelo monitor:

- Sempre, o tempo todo, mas fazer o que, é melhor que fazer nada não é?

Acho graça nisso tudo, a considerou uma idiota, mas mesmo assim concordou:

- aham, maravilha!

De forma sarcástica, mas concordou. Olhou para as pernas, que pernas! Olhou para o rosto, imaginou aquele rosto bem próximo ao seu:

- Já têm algum plano para o final de semana? – Pergunta Glauber.

Ela olha, sorri, para de prestar atenção no computador, pega algo na mão começa a mexer e responde:

- ah, ainda não, talvez eu fique em casa, não sei, porque?

- Bem, não queria ficar em casa todos os dois dias do meu final de semana, você gosta de dançar?

Nisso vêm Jorge, e puxa Glauber:

- Bem, tenho que ir, pensa e amanhã me responde.

Eles ficam a sorrir um para o outro, como idiotas. Ela dá um sorriso de leve, ele abana a mão e vai embora.

Jorge estava de carro, vez ou outra vinham de carro, tinha ar condicionado, mas não dava para usar sempre, gastava muito, devido ao ar condicionado. Vão até o shopping perto da livraria. Procuram todos os restaurantes. Escolhem comer um hambúrguer, ambos chegaram a conclusão que não queriam comer muito. Como de hábito, comem rápido. Olham ao redor, olham toda aquela gente comprando, cheias de sacolas, com sorrisos de orelha a orelha. Acham graça. Sentiam cada vez mais distância dessas pessoas:

- E onde é esse lugar? – pergunta Jorge.

- É perto da igreja. Fica numa viela, é num porão. Só não deixe as pessoas saberem que você foi lá.

- É? Porque isso?

- Porque elas acham tudo isso estranho. Esse lance do papel sabe? Porque tu sabes que o papel não têm valor algum, me diz algo de valor que é de papel?

Jorge pensa, tenta lembrar de algo, mas era tudo a base de computadores, televisores... tabelas digitais e etc:

- Cara a única coisa que eu me lembro agora que é de papel, são aqueles para secar a mão quando se vai em algum lugar muito vagabundo.

Glauber franze as sobrancelhas, em afirmação.

Se cansam e se levantam. Caminham até a porta de saída. Dava para ver o calor irradiando do asfalto, pois isso borrava um pouco a paisagem. Caminharam pelo sol. Dava para sentir calor vindo do céu e do chão. Era muito calor. Foram até a rua onde ficava a livraria. O lugar estava aberto, no balcão estava o velhinho, com um ventilador a jogar vento em sua cara. Só então que Glauber percebeu, que aquele lugar tinha cheiro, era o cheiro de madeira, madeira do assoalho em dia quente. Glauber lembrou da casa de sua avó, que era no campo. Seu pai havia nascido numa cidade pequena, mas conseguiu um curso técnico, e conquistou um bom emprego numa fábrica, ganhando relativamente bem. Mas agora que ele estava doente, ninguém da fábrica lhe ajudava, nem foram lhe visitar. Nem chefe, nem colegas. Não era problema deles se alguém que nem aparecerá mais em suas vidas morrer, a gente simplesmente vai deixando de sentir falta.

O velhinho o reconheceu:

- E como vai a sua conversa com nosso amigo alemão?

- Como senhor? – Glauber não entendera a pergunta.

- Estás lendo os livros sobre Nietzsche que você comprou?

- ahh, sim meu senhor, estou a ler. Um pouco todo dia. Estou quase acabando um deles até. Estou lendo os dois ao mesmo tempo.

- E pelo jeito gostasse desses livros não é mesmo?

- Sim sim, vim em busca de mais.

- Precisa de alguma ajuda?

Ele olha para Jorge, e termina-se por balançar a cabeça em sinal negativo. Vai cada um para dentro de uma prateleira. Vai olhando livro por livro, alguns mais novos, outros acabados, amarelos. Alguns com capa, outros poucos sem. Entre essas prateleiras, Glauber encontra uma mulher. Ela era quieta, tinha cara de poderosa, nunca havia visto uma mulher como aquela. Cabelos mais curtos, mas o corte era diferente. Sua roupa não era a que a maioria das mulheres usava. Isso chamou sua atenção na hora. Além do mais ela era bonita. Tentou espiar que livro ela estava a olhar. Era um com o titulo original em japonês, mas o livro não era escrito em japonês, era só para dar uma estética melhor à capa. Ela o encara, séria. Ele olha, sente vergonha, e repentinamente volta a olhar para os livros, passando o dedo por entre eles, como se quisesse escolher algum. Nisso espia para ver ela novamente. E lá estava ela, parada, com seus olhos atravessando os óculos, fixos nele. Fica feito um imbecil, com a boca semi aberta, olhando. Ela pega o livro, caminha até o balcão, paga. Para na saída, puxa um cigarro, o acende. Glauber fica espantado, poucas pessoas fumavam. Dois segundos depois de ela sumir, vai até a porta, olha para um lado, não a vê, olha para o outro, e lá vai ela, soltando fumaça, caminhando rápido, como poucas mulheres faziam. E ela some na multidão logo.

Nisso Glauber percebe que havia um espaço provocado pelo livro que ela tirou da estante. Ele vai até lá, e percebe que os dois livros entre o espaço tinham a jogada do título em japonês na capa, com a tradução logo abaixo. Ele pega os dois, olha a capa, escolhe pela capa mais bonita. O autor era o mesmo e o tamanho de um para o outro não mudava muito. Chamava Jorge, que já havia escolhido dois livros. Pagam, e vão embora, cada um para seu lado, precisavam descansar, já que o trabalho no laboratório era cansativo.

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A história termina aqui.