sábado, 4 de janeiro de 2014

História de verão: 2


Fim de ano sempre foi um saco, parece que as pessoas da cidade inteira deixam para dezembro tudo que não fizeram o ano inteiro. O trânsito de fim de ano piorava drasticamente em relação ao ano inteiro e, já nos dava uma prévia de como seria o tráfico no ano que vem. Entre tantas coisas dando errado, consegui sair do trabalho dez minutos mais cedo e pegar o ônibus vinte e cinco minutos antes do habitual. É incrível como por causa de alguns minutos você ganha meia hora de bônus no seu dia. Meus fones de ouvido já haviam sido danificados pela manhã, saindo som apenas pelo fone esquerdo, o que causa um desagrado gigantesco aos ouvidos, preferia ficar sem música do que ouvi-la mal.
Além de chegar mais cedo por causa desses cinco minutos, eu havia pego um ônibus mais vazio com lugares para sentar. Ainda pegaria engarrafamento, porém menos e chegaria a tempo de pegar o ônibus e com isso chegar em casa meia hora mais cedo. Como fazia tempo que não entrava num ônibus sem meus fones, comecei a escutar os sons ao meu redor. Um sujeito no fundo conversava em monólogo com um sujeito que apenas assentia com sua cabeça, “ali eu trabalhei já”, “nesse eu fiz a parte elétrica”, “aquele outro fiz todo o porcelanato”, conclui de que deveria ser algum trabalhador da construção civil. Aqui e ali uma conversa ou outra sobre o que seria feito no natal. No banco da frente um sujeito com pinta de moderninho mexia em seu celular gigante e sem perceber me pegava lendo seus conversas intimas no celular. Nada demais estava ali.
Quando cheguei ao terminal ainda faltavam quinze minutos para meu ônibus. Geralmente ficava lendo ou ouvindo música, mas desta vez para minha surpresa haviam dois velhinhos trajados de caipiras, com direito a bota, chapéu e camiseta xadrez tocando modas de viola. Um caixinha amplificava a viola e o resto (violão e as duas vozes) saiam de forma acústica. Eu absolutamente não conheço nada de música sertaneja, mas nos últimos anos havia ampliado meus ouvidos para outros ritmos, já que os de sempre me cansam. É bonito afinal, um bom tipo de música, parece mais pura do que as que tocam nas rádios. Como não é todo dia que se pode ouvir uma música de raiz assim, num ambiente tão inusitado como um terminal de ônibus em uma cidadezinha úmida, sentei perto e comecei a ouvi-los.
Em princípio havia apenas uma moedinha por cima da caixinha ao lado dos cartões de visita da dupla (nem tão de raiz assim, concluí). Aos poucos um círculo foi se formando em volta deles, uma mulher bateu palmas, um sujeito sorriu para eles e deixou umas moedas que foram retribuídas com um obrigado pelo violeiro. Pouco a pouco pessoas apressadas passavam por ali e outras que esperavam seus ônibus ouviam e deixavam moedas e notas baixas de dois ou até mesmo cinco reais. No meio de uma semana toda errada e acompanhada pelo azar, nada melhor parecia me acontecer depois de sair mais cedo do serviço. Foi então que ela apareceu.
Quando a vi ela chamou minha atenção, mas não muita, confesso. Era apenas pelos seus dotes físicos. Ela me parecia uma daquelas garotas que acreditam viver em Nova York ou Londres, mesmo que sua cidade natal seja no interior de um país marcado pelas desigualdades sociais e um racismo velado. Ela ouvia música em seus fones e carregava um livro em sua mão. Sua calça era justa e marcava bem sua bunda, que era grande e bonita, farta. Seu tronco combinava com a fartura das nádegas, algumas pessoas menos atentas podem dizer que ela é gordinha, mas entendo que isto não passa de falta de visão, de pouca paixão pelo sexo e pelas mulheres. Seus cabelos eram longos e negros, com algumas pequenas manchas fracas de tinta no cabelo. Sua blusa era levemente folgada, com um dos ombros desnudos, deixando um lindo pedaço de sua pele a mostra. Seus óculos escuros davam um nítido ar de mistério. Reparei nela e nisto tudo assim que, enquanto caminhava ela parou de andar, tirou seus fones de ouvido, fechou seu livro e olhou para os dois velhinhos tocando viola. Imaginei que pela cara de “garota moderna que escuta rock”, acabaria fazendo alguma careta, botaria os fones e sairia andando. Concluo agora que julguei-a por mim e que nada disso ocorreu, posso lhe afirmar que o que vi afinal de contas fora um show hipnótico. Com seus delicados dedos mexeu na sua bolsa, dali tirou sua carteira e caminhando até os dois senhores depositou uma nota de vinte reais. Todos olharam, todos a notaram, mas por deixar vinte reais ali, enquanto eu fiquei encantado por tudo, desde seus cabelos e a curvatura de sua coluna e pernas ao depositar os vinte reais sobre a caixinha. Até mesmo seus cabelos que tinham uma lateral raspada, algo que eu sempre desprezara, me criaram encanto naquela ocasião. Seu corpo era carnudo, apetitoso, sua postura a de uma mulher livre e independente, sua aparência serena, tudo que poderia me ocorrer era ficar pensando nela durante algumas horas. Quando ela deixou o dinheiro e foi embora sem seus fones para ouvir os dois velhinhos, quis ir andando atrás dela, pegar o mesmo ônibus e descobrir onde ela mora, ou quem sabe algo menos psicótico e só esbarrar de propósito para tentar puxar assunto, quem sabe apenas tocar em seu ombro e dizer o quão poético fora sua aparição, que eu a desprezara a primeira vista, mas que depois de tudo eu estava apaixonado pois ela parecia ser uma mulher forte, independente e livre. Quanto a esses elementos todos, meu coração não poderia resistir.
Talvez ela risse, talvez voltasse a colocar seus fones, talvez fossemos beber algo em qualquer lugar ali perto. Só sei que conforme ela se afastava de minha visão para nunca mais ser vista em minha vida, eu ainda hesitava em pegar as minhas duas moedas que haviam na carteira para deixar aos dois senhores trovadores, algo que me acometia desde que os havia notado. Ainda pensando nela e hesitando minhas pobres moedas, entrei no ônibus e fui embora.