
Copa do mundo
Me ligaram e deram o sinal verde, “as quatro da tarde, entendeu?”, queriam ele morto as quatro. Ligaram cedo, acordei com o barulho do telefone. Queria dormir, mas não conseguia, toda vez que tinha que matar alguém minha cabeça ficava terrível, mas fazer o que, era só isso que eu sabia fazer. Nem sei quem me ligou, mas eles e eu sabemos como funciona. Eles depositam a grana na minha conta, eu mato o sujeito, e fica tudo bem. Se eu não fizer o serviço, eles mandam outro igual a mim ou pior, para fazer comigo o que eu não quis fazer com outro, lei da selva. Comi uma comida sem gosto no almoço. Arroz com caldo, não sei cozinhar muito bem mesmo. O arroz parecia purê de batata, mas o gosto era de arroz. Dava para sentir a meleca grudar no céu da boca, mas o gosto ainda era de arroz, arroz molhado, grudento, mas arroz.
Escolho a minha arma, pego uma beretta, ela daria conta do serviço. Uma faca, sempre é bom ter uma faca, nunca se sabe quando vai precisar dela, é como no filme do Rambo, de repente a faca aparece e corta a cabeça de alguém. Odeio o Rambo, não é daquele jeito que se briga. Não é o meu jeito pelo menos. Pego a beretta e coloco atrás na calça e a cubro com o casaco. A faca vai na cintura mesmo, a calça esconde a ponta e o casaco o cabo dela, assim eu sei onde ela está, meus inimigos não. Dou um teco antes de sair, para ficar alerta, não posso ser pego desprevenido, ainda não.
A grana nem era tão alta assim, não é pouca, mas não é muita, não gosto disso, as vezes penso que a vida de um homem deveria valer mais. O morro aqui é pobre, já foi pior, antes nem geladeira ou fogão a gás o pessoal tinha, lembro quando eu era criança, lembro da polícia, que só aparecia para incomodar, ou quando ninguém precisava mais dela. Lembro da vez que o prefeito subiu o morro para se reeleger, e conseguiu. Depois esqueceu da gente de novo. Foi indo aos poucos, agora todo mundo tem televisão, fogão a gás, geladeira, som. Eu também, não tinha nada antes, agora tenho minhas coisas, meu canto, pena que não sei cozinhar.
Depois do almoço fica todo mundo tranquilo, acho melhor para dirigir a minha moto. Terminei de pagar ela mês passado. Vejo os moleques jogando bola no campo de terra, eu joguei naquele campo de terra, agora estou aqui passando com a minha moto. Paro no primeiro caixa eletrônico que eu acho, verifico se recebi. A grana está lá, sempre é bom dar uma verificada, pois se queimar por nada, não vale a pena. Tinha a conta no banco e ainda pagava aposentadoria como autônomo, vez ou outra arranjava um emprego de carteira assinada, mas geralmente é isto mesmo o que eu faço, matar pessoas.
O sujeito morava num desses prédios legais, era mais bonito que a minha casa. Acho legal esses prédios com poucos andares, chato é que eles nunca têm elevador, daí tenho que subir de escada, e geralmente as encomendas moram no último andar, nunca no primeiro, e este não era exceção. Tinha uma bandeira do Brasil enorme numa das janelas do último andar, pelo numero do apartamento, deve ser o dele. O prédio todo tinha bandeiras, mas aquela se destacava, cobria a janela do sujeito. Ainda faltava tempo. Não ia entrar agora, pediram para as 16 horas porque tinha jogo do Brasil, copa do mundo. Eu prefiro assim, melhor perder o jogo que o couro. Era a semi final. Todo mundo ia para casa assistir o jogo, até quem não gosta de futebol. Olho a estrutura do prédio, por onde eu poderia fugir, caso preciso. Nunca precisei na verdade. O lugar tinha boas ruas, dava para ir embora por todos os lados, isso sempre era bom.
As ruas já estavam vazias, o jogo já tinha começado. Dava para ouvir os televisores sincronizados, emitindo o mesmo som. Subo, degrau por degrau, até o último andar. Vou até a porta com o numero que me passaram, pego a beretta e bato na porta para ele abrir para mim. O hino já tinha acabado e a bola estava rolando. Ele abre, pergunta quem é, não respondo, empurro a porta na cara dele e dou uma coronhada no ombro. Fecho a porta rápido enquanto ele está caído no chão. O mando ficar quieto. Me falaram que ele era solteiro, mas poderia ter alguém na casa. Olho rápido por todos os cômodos, e não vejo ninguém. Ele já se levantava, o empurro para o sofá, para assistir o jogo, o mando ficar calado. Pego uma fralda e amarro sua boca, para que ele não pudesse fazer som algum. O coloco sentado para ver o jogo, mantenho a arma apontada para ele. Pego uma cadeira da sala e me sento do lado do televisor, com a arma apontada para ele. O suor escorria de sua cabeça, saia catarro de seu nariz, e sangue, mas só um pouco. Ele estava agonizado, gemendo e babando toda a fralda, tentando falar algo. Olho para ele e pergunto se está torcendo pelo Brasil. Ele faz que sim com a cabeça. Olho para aquela bandeira enorme que ele tinha na janela, era do apartamento dele mesmo. “Vou atirar em você no primeiro gol que o Brasil marcar”, ele entende no ato. Com toda a barulheira que acontece quando o Brasil faz gol, ninguém perceberia que ele levou um tiro, soltam foguetes e mais foguetes. Meu tiro seria só mais um barulho.
O Brasil jogava forte, mas a outra seleção não era brincadeira, estavam dando trabalho, vários chutes a gol dos dois lados, mas chutes imprecisos, difíceis. Mesmo assim, estava nítido que sairia gol em algum momento. O primeiro tempo já estava acabando, ele estava encharcado: suor, catarro e a saliva que deixava a fralda molhada. O sangue tinha para de escorrer já. O primeiro tempo acaba, olho para ele e disse que isso não mudava as coisas, era só mais sofrimento para ele, “é melhor torcer pro Brasil”.
O segundo tempo começa, o Brasil entra com tudo. O narrador estava animado, conforme o narrador ficava animado, ele ficava cada vez mais angustiado. Deve ser terrível mesmo. O narrador berrava a plenos pulmões, como se isso muda-se algo. O jogador entra na grande área, toca para o colega a esquerda, manda para o que estava livre no meio ele chuta e a bola entra no gol. O narrador se desespera em alegria, os jogadores correm para todos os lados, pegam a bola, correm para a câmera para comemorar o gol, é uma festa. A encomenda começa a chorar, lágrimas não param de escorrer de seus olhos, peço desculpas, sei que isso não adianta, ele preferia que eu o enchesse de porrada, podia até mesmo o queimar com ferro quente, não adiantava pedir desculpas para o que eu ia fazer. Ponho a beretta na cabeça dele, na boca. Seu corpo tremia, eu esperava apenas o primeiro foguete. Por completa sorte minha e azar dele, seu vizinho do lado solta um foguete, eu sorrio ele chora mais ainda. Atiro. O sangue jorra na parede, espero o próximo foguete, atiro de novo, e mais um na barriga. Algumas pessoas balançavam a bandeira do Brasil na janela, outras assopravam as trombetas. Tão logo tudo parou, vejo o replay na tela. Foi um gol bonito, jogada ensaiada, acho jogadas ensaiadas bonitas. Abro a porta, no corredor tem uma menininha, de menos de 8 anos, toda vestida a caráter de seleção. Ela me olha séria, percebe o cabo da minha faca, que ficou a mostra por causa da ação. Fica séria, mando um beijo para ela, um beijo deixado no ar, ela sorri e volta correndo para o seu apartamento.
Desço as escadas, pego minha moto e volto para casa. As ruas estavam vazias, passo na frente do posto policial e todos estavam do olho no jogo. O Brasil ganha e todo mundo fica feliz, quase todo mundo. Termino de ver o jogo em casa, ganhamos por 1x0, mas ganhamos, estávamos na final.
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