terça-feira, 28 de outubro de 2014

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Faz tanto tempo que eu te amo




Faz tanto tempo que eu te amo
que da última vez que eu te vi sorri na alma
Meu corpo inteiro esquentou e estremeceu
meus dedos cegos te procuravam no tato

 e tudo que eu precisava era me apaixonar

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Medicina e a alternativa

Walentin Aleksandrovitch Serow


Ninguém mais sabia direito o que fazer, o garoto continuava com suas dores fortes no estômago. O médico de confiança da família o examinou, tiraram raio x, endoscopia e nada podia ser identificado pela moderna medicina. Num momento de desespero a mãe pergunta ao médico, “e pode haver alguma solução para tudo isto?”, ele raciocina e muito complacente responde, “não se preocupe, confie na ciência, acharemos alguma solução para o caso de seu filho, ademais não lidamos com algo tão crítico, fique tranquila pois nada indica que ele irá morrer ou algo do tipo”. Isto já era sabido havia muito tempo, para essa resposta não era necessário um médico, por isso a criança desabafa, “mas mãe, essa dorzinha me incomoda”, e este era o problema, o incômodo em sua barriga, dentro de si, que não sossegava.
Quando saem do consultório em direção ao carro, a mãe caminhava determinada, voltam para casa sem dizer nada, pois não havia o que ser dito, afinal a criança não morreria, isto já era claro para todos havia muito tempo. Chegando em casa a mãe telefona para sua mãe, falava com a avó da criança, “Sabes me dizer se ela atende ainda?”, podendo ouvir apenas um lado da linha, algum tempo depois a conversa segue com, “ah, sim, ali do lado do posto de saúde, uma rua depois, sei onde fica”, a conversa seguiu mais um pouco terminando com, “ah, o Roberto não pode saber, ele não acredita nessas coisas”. E não acreditava mesmo. Roberto era formado numa universidade de prestígio, exercendo um cargo de prestígio e muito esforçado e competente, é verdade, mas sua única crença era na ciência e no que ela poderia dizer. É importante frisar que Roberto não faria muito mais que esbravejar caso soubesse, haveria no máximo um discussão entre o casal, mas e o incômodo de tudo isso? Como ficava a criança no meio dos dois gigantes adultos preguejando? Melhor era manter as coisas na surdina mesmo.
O tempo do dia ainda permitia que fossem, mãe e filho entram no carro, o local era um pouco mais à periferia do que onde moravam, algumas casas coloridas e multifacetadas pintavam o morro, ali entre casas de muro alto, outras de muro baixo estava uma casinha de madeira, que parecia estar ali desde o tempo em que soprava o vento. Havia um banquinho onde as pessoas estavam sentadas, como que fazendo fila. Os dois sentam ali e a mãe avisa para esperar, como se restasse alguma escolha para a pobre criança. Sua mãe encontra uma conhecida alguns minutos depois de se sentarem, parecia ser uma amiga de algum tempo atrás, ela também trazia seu filho, as duas compartiam um sorriso de conivência, deixando no ar que faziam algo escondido. Conversaram, cada uma explicando os eventos que as levou até ali, ambas estavam com algo incomodando seu filho, ambas haviam tentado o médico algumas vezes, ambas vinham sem o consentimento de seus maridos, por sinal o marido da amiga da mãe do filho, era casada com um médico irmão do médico de confiança da família, saca? Baixando cada vez mais o tom, a conversa das duas ganhava como pauta o mal-estar das crianças e a discordância dos maridos, chegando ao final num sussurro baixo, em alemão colonial, arrematando o diálogo com ambas balançando a cabeça em gesto afirmativo deixando no ar uma dúvida sobre o que haviam dito. Tão logo esta língua desconhecida era pronunciada, chegava a vez deles.
A mãe vai com seu filho para dentro, o lugar era notadamente mais escuro que o lado de fora, o sol penetrava mais fraco ali dentro daquele quartinho com uma vela acesa num canto próximo a imagem de um santo. A benzedeira toca na testa da criança, sua mão leve vai para a barriga, o que leva a benzedeira a perguntar algo para a mãe que é confirmado por ela com o mesmo movimento assertivo de havia pouco. A passos calmos pega uma linha num canto da sala, cortada habilmente com auxilio da vela. Sussurrando palavras incompreensíveis para a criança, a linha passeia pelo corpo, indo para lugares estratégicos. Depois fazendo movimentos no ar e mantendo seus sussurros, a criança termina sua benzedura. A mãe agradece, deixa um agrado para a benzedeira, que muito maquinalmente dá seus agradecimentos e guarda o dinheiro entregue pela mãe num bolso da roupa.
Sem entender nada do que havia acontecido, a criança volta para casa com sua mãe, o fim da tarde já acontecia. Tomam seu café, ele é liberado para assistir o seu desenho na televisão, toma seu banho e dorme um pouco mais cedo do que o habitual. Para seu pai não fora dito nada, mas parecia que naquela noite ele conseguia dormir mais tranquilo, o incômodo havia sumido junto com o sono.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

O sentido da esquerda ou, Não estou nessa pra pegar mulher


Estamos esquecendo do mais importante, as mulheres (e os homens) não são “seduzidos” pelos discursos da esquerda devido a sua malícia ou o mero conforto, essa aceitação do discurso de esquerda ocorre porque estes discursos fazem sentido. Quando é dito “que é necessário libertar seu corpo do julgo patriarcal”, a reverberação disso entre as mulheres ocorre não pelo fato de que supostamente é chique ser feminista, mas porque faz sentido ser feminista. Afinal, as mulheres (e os homens) são ainda hoje vítimas do machismo, e aceitam esse discurso “de esquerda” por fazer sentido a sua existência. Não houvesse essa pressão sobre o corpo feminino, propagandas como as do iogurte-gostoso-que-te-ajuda-a-ir-no-banheiro, não seriam direcionadas a um público tão específico de mulheres, donas de casa e mães. Se não houvesse machismo este produto talvez nem fosse necessário, pois mulheres se libertariam da pressão de serem bonitas, lindas e perfeitas vinte e quatro horas. Pode parecer exagero, mas não havendo esta pressão sobre o corpo cobrando toda essa beleza, o estomago, nosso velho coração segundo os gregos antigos, funcionaria melhor, mais livre, e quiçá um produto assim fosse dispensável, ou não teria um foco tão grande em mulheres, donas de casa e mães.
Não há sedução ou malícia alguma no discurso de esquerda, há sim algo próximo ao bom senso e a razão. E se as pessoas aceitam estes discursos (plural, pois são vários), é porque eles tem um sentido na vida dessas pessoas. Negar isso seria ignorar a autonomia e liberdade que nós seres humanos temos. E da mesma forma que o brasileiro adotou uma série de americanizações também pelo fato da cultura estadunidense ser rica e interessante, o discurso de esquerda passa pelo mesmo – a diferença é que a esquerda não é gerida por um escritório central, muito menos é financiada por ricos lobistas como ocorreu no processo de americanização do Brasil, que fique claro! O ponto chave é, o discurso de esquerda é confortável, mas não por te ajudar a “pegar mulher”, por ser mais fácil ou de maior aceitação social, mas sim por te ajudar a viver de uma forma mais livre e sensata, até porque deixar de ver a mulher como um objeto que pode ser pego e usado, pode proporcionar ao homem toda uma nova gama de experiências ótimas com ela(s), e que podem ser muito produtivas e prazerosas para ambos. Até porque um dos maiores problemas para a família hoje em dia é todo o peso de uma normatividade que não faz mais sentido.
Diferente do que parece ocorrer entre certos adeptos do discurso de direita, que mesmo sozinhos e indesejados pelo sexo oposto, não abrem mão de sua individualidade e verdade, os discursos de esquerda fazem algum sucesso entre mulheres e homens porque dizem para essas pessoas que elas não estão erradas. Não estão erradas por serem indígenas, afrodescendentes, mulheres, uma pessoa que não quer ser milionária, homossexual ou pobre, e isto é muito bom, saber que você não é errado, não é uma peça estragada dentro da rígida máquina que é a sociedade. No fim das contas, enxergar a sociedade como algo mais desenvolvido e humano do que uma máquina, onde cada pessoa tem seu lugar estático, onde o negro deve continuar segregado, o índio ignorado, a mulher oprimida, o gay como motivo de piada e violência, o pobre ao Deus dará e todos devem almejar ser um Eike Batista ou Warren Buffet senão estão errados, isso é algo muito bom e libertador sim, mas não por ser fácil, mas por fazer sentido a nossa vida.

sábado, 8 de março de 2014

História de verão 3

León Bakst
          Parecia que eu havia desistido de viver naquele verão. Não foi só por causa de ter pego recuperação final pela primeira vez na minha vida, ou pelo fato de que tudo parecia estar dando errado conforme o clima ia esquentando. Meu pai havia perguntado para mim cinco meses atrás se eu realmente gostava de tocar violoncelo, sem pensar respondi que sim. Agora, final de ano nós não iriamos para a praia como de costume e tanto meu pai quanto minha mãe já haviam avisado que eu ficaria sem presente de natal. Como as aulas de violoncelo continuariam, eu havia entendido tudo.
           Óbvio que todo estre drama começou depois que eu havia ido na escola saber a fatídica resposta para a pergunta: “vou repetir de série ou não?”. Lembro que as ruas pareciam estar mais vazias do que o normal, o calor devia estar afastando elas da rua, além disso muita gente já estava indo para o litoral. Eu sempre achava um saco, mas percebia devagarinho que era muito mais prazeroso reclamar de algo que se possui. Além das ruas vazias não dava pra sentir aquele cheiro de almoço sendo feito nas casas. Fui até o local onde era a minha sala, esperei o colega que estava ali dentro conversando com a professora terminar. Ele saiu sério, não me cumprimentou, não éramos chegados. Entrei cabisbaixo, como se meu comportamento naquele momento poderia reaver uma decisão já tomada, sentei na cadeira posta de frente a mesa da professora e assim que minhas nádegas encostaram na madeira ainda quente ela disparou: “Você quer passar de ano?”. Aquelas palavras foram suficientes para me gelar a espinha a tal ponto que minha cabeça mexeu levemente em sinal afirmativo, isto não foi o suficiente, tão logo respondi ela continuou: “Você deveria ter tomado mais cuidado, pegar recuperação assim, sem nunca ter pego nenhuma vez na tua vida Walter. O pior é que já tive alguns alunos meus que aconteceu isso, eram excelentes e depois, começam a brincar e repetem de ano. Mas isso Walter, o resultado que nós temos aqui”, dizia ela enquanto balançava o papel que parecia ser meu boletim com o veredicto, “o resultado que nós temos aqui é trabalho de um ano inteiro está bem?”. Ela me entrega o boletim e antes mesmo que eu pudesse manifestar algo, eu tinha percebido que havia passado de ano. Quando sai pela porta ainda amortecido pela situação a professora soltou, “boas férias”.
          Quando sai do colégio o babaca que não havia me cumprimentado antes foi o primeiro a perguntar, “eai, passou?”. Fiz que sim com a cabeça e continuei andando, não o suportava, pois ele queria se levantar colocando os outros para baixo, provavelmente pediria para ver minhas notas e falaria de alguém que tirou mais do que eu caso esta pessoa não fosse ele. No portão da escola encontrei a Gabriela entrando no pátio, nos cruzamos e ela perguntou sorridente logo após o beijo na bochecha – que nunca antes na minha vida me fora dado por ela – se eu havia passado de ano. Respondi que sim e ela me correspondeu com um sorriso, e tão logo surgiu, ela já foi saber o seu resultado enquanto eu notava pela primeira vez que ela tinha uma beleza ímpar e que talvez por isso eu nunca havia dado muita atenção para Gabriela. Não sei porque, mas tive vontade de esperá-la. Para não bancar o apaixonado, o que eu me recusava por sinal, fui conversar com o purgante para matar tempo. Foi ai que eu tive a genial ideia de fazer com ele o que sempre era feito comigo. Olhei suas notas, todas menores que as minhas, ri dele, critiquei-o, comparei suas notas com a de algum aluno que havia passado direto, para piorar falei de suas roupas, ele usava um boné chamativo, e por isso não era difícil usar seu ponto forte como um ponto fraco.
          No instante que eu vi Gabriela andando pelo pátio, fui falar com ela, pouco me importava sua resposta, só queria ouvir sua voz. Ela, assim como eu, havia passado de ano. Mantendo a conversa fomos saindo da escola, caminhando pela rua vazia, sem vento, apenas o sol nos castigando. Quando paramos na esquina de sua casa eu perguntei: “você também vai ficar aqui este fim de ano?”, e ela respondeu “sim, meus pais só vão poder ir para praia no carnaval”. Disse que seriamos só eu e ela então, ela sorriu, abaixou a cabeça e tremia um pouco, eu como já estava no ápice de minha coragem estava a ponto de desmontar e virar uma pilha de ossos na calçada. Em apenas cinco minutos, desde o beijo na bochecha até aquele momento, eu me apaixonara por ela. Dava para sentir que o nervosismo dela era o mesmo que o meu. Sem mais nem menos ficamos em silêncio, que foi interrompido por um beijo ligeiro de despedida.
          Não queria saber de nada nem de ninguém. Fiquei dois dias pensando em como poderia ser minha vida dali para a frente, as possibilidades eram variadas, desde empresário ou diplomata até traficante ou assaltante de bancos. Não conhecia nenhum traficante que era algo mais do que um imbecil e os bancos tinham tanta segurança que seria uma armadilha assalta-los. Esta brincadeira de supor coisas sobre mim logo cansaram, por isso me entreguei a leitura e a audição de música. Acho que foi naquele verão que conheci bandas como Doors, David Bowie, Sex Pistols, Rolling Stones, Pink Floyd e Mutantes. Como acabei passando muito tempo no computador resolvi contatar Gabriela para saber como as coisas estavam. Acho que de todo o pessoal, apenas eu e ela estávamos na cidade. Quando a chamei, mesmo sendo de madrugada ela me respondeu. Ficamos conversando até duas horas da manhã. Na noite seguinte foi a mesma coisa. Precisei de mais duas noites de conversas sem fim para lhe intimar a fazermos algo no dia seguinte, pela tarde. Inventei que poderíamos passear de bicicleta, que eu conhecia um lugar legal. Contra os avisos de minha mãe por volta de 15:30h eu já estava na mesma esquina onde havíamos nos despedido dias antes, e como o combinado ela estava lá. Sem trocar palavras fomos indo até o local, no caminho passamos na frente do mercado e eu vi o imbecil do qual eu não gostava, ele me viu, olhos nos olhos, nenhum cumprimentou o outro. Aquilo me afligiu, pois logo todos saberiam que Walter e Gabriela pedalavam juntos e minha paciência estava cada vez mais curta. Pouco antes de chegar no lugar me toquei de que as aulas demorariam para começar e que talvez até elas voltarem já não me incomodariam tanto.
          O lugar era um terreno com barro espalhado de maneira a formar alguns relevos, o que era legal para andar de bicicleta, tanto eu quanto Gabriela demos algumas voltas, foi então que ela se cansou e foi se sentar embaixo de uma árvore. Eu percebi que ela estava ali, mas mesmo assim dei mais algumas voltas de bicicleta até parar de frente a ela e dizer: “vamos andar Gabriela”, ela sorrindo me disse que estava cansada e então larguei minha bicicleta e me sentei de seu lado. Trocamos trivialidades sobre o verão, “vai chover hoje”, “acho que chega aos quarenta graus”, até sermos atingidos por um silêncio que eu viria a conhecer muito bem ao longo de minha vida. Nós dois estávamos calados e mexíamos nervosamente nossas mãos. Quando aproximei minha face para falar algo fui recebido por um beijo nervoso em meus lábios. Estranhamente eu esperava por aquilo, e logo retribui o carinho. Ficamos alguns minutos se beijando e depois dei um abraço em Gabriela, com vontade e receio de encostar nela, pois, lhes digo, era meu primeiro beijo. O sorriso parecia começar nas minhas orelhas de tão grande que estava. Ela por sua vez, parecia querer contar alguma sensação que até hoje não sei qual é. Depois daquela tarde voltamos cada um para sua casa e fiquei pensando na tarde maravilhosa que eu tivera – ou melhor, no beijo. Quando convidei Gabriela numa de nossas conversas da madrugada na internet ela havia me dito que não daria pois tinha um compromisso sério, não explicou mais nada e eu evitei pedir por detalhes. Naquela tarde em que as ruas pareciam vazias fui até o mercado buscar leite, e ao sair do lugar vi Gabriela abraçada com o boçal da mesma forma que ela se abraçara comigo um dia antes, entendi então que ele era o compromisso sério.

sábado, 4 de janeiro de 2014

História de verão: 2


Fim de ano sempre foi um saco, parece que as pessoas da cidade inteira deixam para dezembro tudo que não fizeram o ano inteiro. O trânsito de fim de ano piorava drasticamente em relação ao ano inteiro e, já nos dava uma prévia de como seria o tráfico no ano que vem. Entre tantas coisas dando errado, consegui sair do trabalho dez minutos mais cedo e pegar o ônibus vinte e cinco minutos antes do habitual. É incrível como por causa de alguns minutos você ganha meia hora de bônus no seu dia. Meus fones de ouvido já haviam sido danificados pela manhã, saindo som apenas pelo fone esquerdo, o que causa um desagrado gigantesco aos ouvidos, preferia ficar sem música do que ouvi-la mal.
Além de chegar mais cedo por causa desses cinco minutos, eu havia pego um ônibus mais vazio com lugares para sentar. Ainda pegaria engarrafamento, porém menos e chegaria a tempo de pegar o ônibus e com isso chegar em casa meia hora mais cedo. Como fazia tempo que não entrava num ônibus sem meus fones, comecei a escutar os sons ao meu redor. Um sujeito no fundo conversava em monólogo com um sujeito que apenas assentia com sua cabeça, “ali eu trabalhei já”, “nesse eu fiz a parte elétrica”, “aquele outro fiz todo o porcelanato”, conclui de que deveria ser algum trabalhador da construção civil. Aqui e ali uma conversa ou outra sobre o que seria feito no natal. No banco da frente um sujeito com pinta de moderninho mexia em seu celular gigante e sem perceber me pegava lendo seus conversas intimas no celular. Nada demais estava ali.
Quando cheguei ao terminal ainda faltavam quinze minutos para meu ônibus. Geralmente ficava lendo ou ouvindo música, mas desta vez para minha surpresa haviam dois velhinhos trajados de caipiras, com direito a bota, chapéu e camiseta xadrez tocando modas de viola. Um caixinha amplificava a viola e o resto (violão e as duas vozes) saiam de forma acústica. Eu absolutamente não conheço nada de música sertaneja, mas nos últimos anos havia ampliado meus ouvidos para outros ritmos, já que os de sempre me cansam. É bonito afinal, um bom tipo de música, parece mais pura do que as que tocam nas rádios. Como não é todo dia que se pode ouvir uma música de raiz assim, num ambiente tão inusitado como um terminal de ônibus em uma cidadezinha úmida, sentei perto e comecei a ouvi-los.
Em princípio havia apenas uma moedinha por cima da caixinha ao lado dos cartões de visita da dupla (nem tão de raiz assim, concluí). Aos poucos um círculo foi se formando em volta deles, uma mulher bateu palmas, um sujeito sorriu para eles e deixou umas moedas que foram retribuídas com um obrigado pelo violeiro. Pouco a pouco pessoas apressadas passavam por ali e outras que esperavam seus ônibus ouviam e deixavam moedas e notas baixas de dois ou até mesmo cinco reais. No meio de uma semana toda errada e acompanhada pelo azar, nada melhor parecia me acontecer depois de sair mais cedo do serviço. Foi então que ela apareceu.
Quando a vi ela chamou minha atenção, mas não muita, confesso. Era apenas pelos seus dotes físicos. Ela me parecia uma daquelas garotas que acreditam viver em Nova York ou Londres, mesmo que sua cidade natal seja no interior de um país marcado pelas desigualdades sociais e um racismo velado. Ela ouvia música em seus fones e carregava um livro em sua mão. Sua calça era justa e marcava bem sua bunda, que era grande e bonita, farta. Seu tronco combinava com a fartura das nádegas, algumas pessoas menos atentas podem dizer que ela é gordinha, mas entendo que isto não passa de falta de visão, de pouca paixão pelo sexo e pelas mulheres. Seus cabelos eram longos e negros, com algumas pequenas manchas fracas de tinta no cabelo. Sua blusa era levemente folgada, com um dos ombros desnudos, deixando um lindo pedaço de sua pele a mostra. Seus óculos escuros davam um nítido ar de mistério. Reparei nela e nisto tudo assim que, enquanto caminhava ela parou de andar, tirou seus fones de ouvido, fechou seu livro e olhou para os dois velhinhos tocando viola. Imaginei que pela cara de “garota moderna que escuta rock”, acabaria fazendo alguma careta, botaria os fones e sairia andando. Concluo agora que julguei-a por mim e que nada disso ocorreu, posso lhe afirmar que o que vi afinal de contas fora um show hipnótico. Com seus delicados dedos mexeu na sua bolsa, dali tirou sua carteira e caminhando até os dois senhores depositou uma nota de vinte reais. Todos olharam, todos a notaram, mas por deixar vinte reais ali, enquanto eu fiquei encantado por tudo, desde seus cabelos e a curvatura de sua coluna e pernas ao depositar os vinte reais sobre a caixinha. Até mesmo seus cabelos que tinham uma lateral raspada, algo que eu sempre desprezara, me criaram encanto naquela ocasião. Seu corpo era carnudo, apetitoso, sua postura a de uma mulher livre e independente, sua aparência serena, tudo que poderia me ocorrer era ficar pensando nela durante algumas horas. Quando ela deixou o dinheiro e foi embora sem seus fones para ouvir os dois velhinhos, quis ir andando atrás dela, pegar o mesmo ônibus e descobrir onde ela mora, ou quem sabe algo menos psicótico e só esbarrar de propósito para tentar puxar assunto, quem sabe apenas tocar em seu ombro e dizer o quão poético fora sua aparição, que eu a desprezara a primeira vista, mas que depois de tudo eu estava apaixonado pois ela parecia ser uma mulher forte, independente e livre. Quanto a esses elementos todos, meu coração não poderia resistir.
Talvez ela risse, talvez voltasse a colocar seus fones, talvez fossemos beber algo em qualquer lugar ali perto. Só sei que conforme ela se afastava de minha visão para nunca mais ser vista em minha vida, eu ainda hesitava em pegar as minhas duas moedas que haviam na carteira para deixar aos dois senhores trovadores, algo que me acometia desde que os havia notado. Ainda pensando nela e hesitando minhas pobres moedas, entrei no ônibus e fui embora.

domingo, 15 de dezembro de 2013

História de verão: 1

      

A consciência lhe atacou, “já faz praticamente um ano”, os aniversários afinal, servem para que lembremos. Agora todo aquele passado parecia irreal. Não foi profundo o que ele tivera com ela, mas ele gostou do pouco que aconteceu, foi divertido, foi bom. O frio na barriga é algo que faz a gente continuar vivo. O engraçado é que os dois nunca chegaram se quer a começar algo, não deu tempo, não deu certo, por mais que tudo parecesse indicar para isso. Depois, por milhares de coisas miúdas – e outras nem tanto – qualquer possibilidade de se beijarem de novo se esvaiu, evaporou. Acabou. E como sempre, sem perceber nunca mais se viram, eles que se viam tanto, rocando mensagens, ou conversando no telefone, mesmo com ele odiando conversas no telefone.
Depois de todo este tempo comentou com seu amigo enquanto se perdiam num bar da cidade: “queria falar com ela”, seu amigo pergunta de forma espantada:
  • porquê?
  • Ora, e eu sei lá, queria conversar.
  • Mas sobre o que?
  • Não sei, pedir desculpas.
  • Mas tu fez alguma coisa de errado?
  • Não, nada, e nem ela pra mim.
  • Então porque pedir desculpas?
  • É que eu me sinto um idiota, acho que por isso.
  • Não, o que tu queria era uma desculpa para conversar com ela.
  • É, vai ver é isso mesmo. Sabe que pensando agora o que mais sinto saudade era disso, conversar com ela. Não que fossem horríveis nossos beijos, mas não sinto falta deles.
Certo dia enquanto passava na frente da casa dela pensou em apertar o interfone para ver se ela estava em casa, ponderou o quão bizarro isto seria, o que ele faria? Por fim imaginou que ela poderia entender que ele estava apaixonado por ela, que a amava loucamente, e não queria causar uma impressão errada, como não lembrava o número, seguiu seu caminho em linha reta.
Meses depois a viu na rodiviária, estava cheio pois já era fim de ano, bem entre o natal e o ano novo, um alvoroço tudo aquilo. Seus olhos a haviam visto, mas ela parecia entretida com seus pés balançando no banco. Seu coração disparou, parecia atingido por algo que lhe gelava a coluna. Por fim abaixou a cabeça e fingindo não a ter visto passou próximo a ela. A garota nem o chamou, e ele não sabia se ela fazia o mesmo ou simplesmente não o havia visto. Nunca mais pensou nela.