quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Tarde encalorada

Pintura de Bruegel, famoso por ter um "universo" em seus quadros. Retirado de http://www.canvasreplicas.com (Um site que achei cheio de imagens separadas por pintor).
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TARDE ENCALORADA

Não gosto da polícia. Ela me incomoda, me assusta, são homens armados e treinados para machucar, pessoas pagas para fazerem uso da sua força. A punição é outra coisa que me abomina, ela está diretamente ligada a idéia de culpa. Alguém sempre precisa ser um culpado, é incrível a capacidade exposta no momento de se procurar um culpado. Tudo isto me gerou algo semelhante a um tumor, mas num campo não físico de meu corpo. Não é físico mas é em meu corpo. A raiva é imaterial, mesmo assim tremo e fico vermelho quando raivoso, ela se reflete em meu corpo.

De toda esta raiva eu sentia vontade de muitas coisas, várias coisas, coisas infinitas. Eu estava sempre sem dinheiro, me entendia como alguém entendido em sociedade, havia pego alguns caminhos dela. Percebi por exemplo que quando um homem entra com uma sacola ou mochila os seguranças o revistam ou o seguem, quando uma mulher entra com sua bolsa, ela pode transitar livre, não é seguida. Casais são menos suspeitosos ainda, eu sabia disso. Eu estava cansado de quando entrava sozinho em algum lugar ser abordado por um segurança, a polícia com etiqueta da empresa no uniforme, querendo ver minha bolsa ou me pedindo para usar o guarda volumes, irritado e estupefato quando ficavam olhando para mim. Cansado disso.

Era verão e o calor estava castigando, eram 15 horas e o sol queimaria ainda até as 20 horas, depois ficaria ótimo para dormir de janela aberta ou ficar de cueca na cama, ouvindo o barulho das pessoas e sentindo o sereno cair no corpo, mas as 15 horas da tarde, você derrete, meu pescoço parecia que ia explodir. Eu e minha parceira estávamos de folga, pouco dinheiro mas com bastante tempo livre. Caminhávamos pelo centro da cidade, poucas pessoas na rua, pois era janeiro as pessoas que podiam iam para a praia e as que ainda ficavam aqui evitavam ao máximo ficar no sol, então pouco caminhavam pela rua. Aliás devo lhes avisar que a cidade era um tanto quanto diminuta, o que colabora para poucas pessoas na rua. Entramos em um sebo, cheio de livros, revistas e gibis. O cheiro de mofo característico, mas não a ponto de ter um cheiro insuportável. Já havia freqüentado arquivos que tinham cheiro mais forte. Fomos aos livros, nos primeiros dois minutos não encontramos nada, mas depois começaram a pipocar bons livros, alguns repetidos, que já tínhamos, outros ainda inéditos. Rápido conseguimos em torno de 5 livros. O dinheiro naquela época era curto e queríamos muito aqueles livros. Continuamos a caminhar pelo sebo, checando onde tinha e onde não tinha câmera e também os pontos cegos. Olhamos o mais caro e junto com outro aleatório colocamos na bolsa dela. Rápido. Permanecemos sérios, não nos olhamos. Eu mordia meus lábios para não rir. Sabia que câmeras não evitam crime algum, isto não era nenhum grande segredo. Fomos até o caixa, pagamos um livro e fomos embora. Voltamos para a praça, nos sentamos debaixo de uma arvore de pouca sombra, que quase nada nos ajudava, mas ainda assim era melhor que nada. Sorriamos fortemente um para o outro. Tínhamos 3 livros pelo preço de um. “Você acha que deveríamos ter feito isto querida?”, “Qual o problema?”, “Não sei, é praticamente automático, dizem que é feio roubar”, “Mas meu querido, eles também roubam, não sinto culpa alguma por isso, este sujeito não emite notas fiscais, certamente se utiliza da mais-valia, também lembre da vez que você foi até lá e trocou 50 revistas em quadrinhos por 5 reais”. Isto nos justificou nosso roubo, nossa adrenalina aumentou. Sentíamos ali nossa rebeldia sendo exposta, nosso tumor sendo isolado e retirado, sim, concordo não todo ele, mas certamente um pedaço. “E também não faríamos isto com alguém que não fosse rico”, ela fala para nos aliviar ainda mais.

Logo fomos procurar outro lugar mais fresco, pois a praça não estava tão agradável quanto no outono. Precisávamos mesmo era de um local climatizado, com ar condicionado. Havia um shopping decadente na cidade, com ar condicionado, caminhamos até lá. Sentimos o frescor ao entrar, o calor que vinha da calça e do paver da rua não se sentia mais. Shopping é o grande local público desta cidade, as praças são para pessoas cansadas, vagabundos e velhinhos. Os shoppings para esta classe média que aqui mora. Cinco anos atrás estava eu neste mesmo shopping com minha mãe fazendo compras de natal. Sempre me sinto bem enquanto sou um vagabundo, para ser mais preciso, aquilo que é comumente nomeado de vagabundo. Agora estavam ali nós dois, o casal mafioso. Usávamos roupas de classe média, brancos quase que como leite. Eu com tons vermelhos em minha pele, que tenho desde pequeno, ela sem essas manchas vermelhas, rosto lindo, muito semelhante ao de uma boneca, além disso um doce de pessoa, minha grande parceira, acima de tudo. Sentamos na praça, próximo ao café que ali tinha. Nos sentamos, depositamos as bolsas encima da mesa como comumente se faz. Tão logo sentamos anunciei que iria até o café procurar algo para comer. Olhei o cardápio. A única coisa que eu poderia comprar ali era um café preto, mas café no calor que fazia não seria tão bom. Tinha o café gelado que já havia tomado uma única vez, mas este por sua vez era muito caro. Praticamente o preço dos três livros juntos. Voltei para a mesa. Olhamos ao redor enquanto deixávamos o ambiente nos refrescar.

Havia um casal, a mulher estava sentada numa mesa, de cabeça baixa, seu marido estava no caixa, ele pedia um bolo. A atendente lhe perguntava algo, “Só falta ele perguntar para ela qual sabor ela quer” – eu disse. Para minha surpresa era isto. A mulher lhe responde e logo em seguida a cena se repete, era para escolher o que beber. O problema é resolvido ele paga. Enquanto pagava falo “mas se é para ela, porque eles já não haviam combinado antes o que ela queria?”, rimos disto e complemento “queres ver, aposto que agora ele vai para outro lugar comprar algo para ele”, e para minha in-surpresa eu acerto. “Se era para somente ela comer, porque ele não lhe deu o dinheiro para ela comprar o que queria enquanto ele comprava o que ele queria?”. Riamos daquela situação.

Isto me fez lembrar da vez em que fui a um bar que parecia parado no tempo e que tinha um banheiro em cima, como que num elevado, num mezanino, achei estranho. Porque me lembrou? Ora, simplesmente porque naquele bar assim como nesta praça de alimentação de shopping eu havia me sentado para observar os arquétipos possíveis que se encontra na rua. Gente como aquele sujeito que parecia pouco sair de casa, exceto para seu trabalho. Aqueles que tem cara de festarem até seu corpo pedir um tempo, os que acreditam ser gênios e intelectuais, os que roubam livros, os que assistem filmes constantemente, os tarados por futebol, os simplesmente deslocados... era incrível, tantos arquétipos e desdobramentos dentro dos arquétipos. Incrível.

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