quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Se passava o ano de 1877

pintura de Egon Schiele

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Se passava o ano de 1877, as ruas eram de terra e o esgoto era esta mesma rua, toda torta e com casas praticamente que jogadas ao longo desta rua, como chovia quase que torrencialmente a lama se acumulava e grudava nas solas do calçado de qualquer ser que resolvesse aventurara-se fora de casa. Ele havia vindo com sua família, era imigrante, seu pai era um guarda-livros, o que dava certo status em meio a uma população onde a maioria eram lavradores. Estava na idade de 26 anos e após ter poupado algum dinheiro trabalhando na capital, queria começar seu próprio negócio, uma tipografia e livraria.

Apesar do dia não ser muito convidativo saiu de casa e foi até o casarão onde se encontrava o único secos e molhados da cidade. Numa rápida conversa num bar com o dono do estabelecimento havia combinado de o encontrar pela manhã, para discutir a respeito da estrutura. Comeu algumas bananas e partiu. O plosh plosh era constante, pois suas botas pisavam uma rua lamacenta. Pessoas na rua, apenas alguns caboclos realizando serviços braçais, e um sujeito que estava correndo por entre as casas. Chegou ao local, geralmente se tinha várias portas abertas, mas como a chuva não parava, havia apenas uma porta aberta, próxima ao caixa ainda por cima. Entrou, suas botas sujaram o chão com a lama, as bate e pergunta pelo Helmuth. Era a esposa de Helmuth que estava no caixa, “ele está lá encima” subiu as escadas, já conhecia o caminho. Helmuth estava sentado perto da janela olhando a chuva e aquela água toda escorrendo pela rua e suas valetas:

- Bom dia Helmuth – anuncia este típico comprimento sem apertarem as mãos.

- oh, bom dia, quase estava me esquecendo que você viria aqui, ainda mais com toda esta chuva – e Helmuth balançava as mãos ao redor da cabeça como se fossem moscas varejeiras.

Apesar de sua desatenção, Helmuth segurava um livro, o guarda na mesa de centro que tinha em sua sala e convida a visita para se sentar. Ele senta e Helmuth chama sua filha e lhe pede para trazer um café para os dois.

- Então Helmuth, como conversamos ontem, eu pretendo abrir uma livraria tipografia, pelo que sei o senhor faz o transporte rio abaixo até o porto.

- Isso, eu faço ele uma vez.

- Mas tu és o dono da transportadora?

- não, não, isto quem faz é a transportadora avanço. Quem cuida dela é o Jüngermann. O caro serão as máquinas.

- Isto já resolvi com Giambatista.

- Um italiano?

- Sim, o conheci durante o tempo em que estava na capital, seu pai tinha a aparelhagem toda, mas ele acabou tendo que voltar praticamente no mesmo período que eu, pois seu pai havia morrido. Assim que soube conversei a respeito do maquinário e praticamente já acertamos o preço.

- Olha, eu te aconselho verificar isto primeiro, e tu já tem o lugar onde isto tudo vai ficar?

- Sim, numa transversal da principal, próximo a padaria do Andrade. É uma casa de um polaco, ele está querendo a alugar.

- Oh, e teus livros vão vir de onde?

- Terei que importá-los, sei que há uma importadora na cidade onde fica o porto que nos leva para a capital.

- E onde eu entro nisto tudo?

- Bem, como você já importa artigos para seu armazém não precisaria enfrentar toda aquela maratona burocrática, claro que os dividendos serão divididos proporcionalmente.

- Certo, eu lhe dou o caminho burocrático para a importação e invisto um pequeno capital.

- Pode ser 7,5% em dinheiro que eu fecho 10% em troca de seu caminho facilitado para importação.

Eles apertam as mãos, e Helmuth fica o encarando sério, se curva para frente aponta o dedo e um sorriso começa a brotar em seu rosto:

- Agora não me esqueça uma coisa meu amigo, tu sabes que os melhores livros são os alemães. Traga muitos livros alemães, pois estes são os melhores. – diz Helmuth.

- Lá vêm você com isto outra vez...

Discutem um pouco a respeito do nacionalismo alemão que brotava, e ele parte até a casa que comprará do polonês. Já havia acertado tudo com o polaco, pagaria um aluguel, pois se tudo desse certo, futuramente precisaria de um espaço maior. O aluguel fora acertado naquilo que chamaram de preço justo.

Este polonês vinha de Danzig, seu pai era um comerciante polonês judeu casado com uma alemã judia. Assim que soube das novas colônias no sul das Américas e de toda a propaganda que fora feita, resolveu seguir os passos de seu pai a sua maneira. Era sobretudo uma forma de fugir da presença autoritária de seu pai. Que por sinal já lhe arquitetava um casamento com uma garota que nada lhe encantava. Juntou um pequeno capital e acabou abrindo uma pequena pensão para alojar os imigrantes que chegavam, bom negócio pois o barracão de imigrantes, que era comum nessas colônias, era também comumente desagradável o que tornava o negócio da pensão lucrativo. Somado a esta pensão ele possuía mais três construções que alugava, uma era a do boteco do Rudolf, outro os fundos da padaria do Andrade (a maior de toda região) e o terceiro era a casa onde seria instalada a livraria tipografia. Czeslaw levava uma grande vantagem pois sabia falar, ler e escrever o alemão tanto quanto o polonês. Seu problema se dava com o português que por sinal falava muitas poucas palavras.

Sabia que podia encontrar Czeslaw na pensão que era próxima ao secos e molhados. Ele ficava quase que o tempo todo na pensão, pois assim economizava não precisando pagar funcionários. Entra na pensão e cumprimenta Czeslaw em polonês:

- Czesc – é a única palavra que ele sabe falar em polonês.

- Olá Friedrich, como vai? – lhe responde Czeslaw em alemão.

- obrigado, vou bem. Vim para lhe avisar de que estou com praticamente tudo pronto para locar aquela casa.

- Oh sim, claro já havíamos conversado. Bem, eu lhe mostrei o terreno que tem atrás da casa?

- Havias me falado dele, mas não me mostrado.

- Então vamos aproveitar para ir agora.

O dono da pensão se levanta da cadeira e começa a falar em polonês, logo ouve uma voz feminina vinda dos fundos da pensão. A voz vai ficando próxima dos dois e aparece a esposa de Czeslaw, uma colona que ele conhecera no navio, ele cumprimenta o futuro locatário em alemão:

- Bom dia Friedrich, como vai?

- Apesar de toda esta chuva muito bem obrigado.

Ela lhe sorri e volta a conversar com seu marido em polonês. Tão rápido ela veio os dois se acertam e Czeslaw e Friedrich saem para a rua. A chuva ainda castigava, e agora a esta hora mais ninguém estava na rua. O local em específico ficava no que seria o centro da vila, numa transversal. Era uma casa simples, mas feita com tijolos e não de madeira como muitas das casas da vila, o que era algo de se admirar. Apesar de que, boa parte das construções na praça da vila eram de tijolos, ao menos as que ficavam na rua principal. Caminharam até a construção, Czeslaw procurou as chaves em sua roupa, e em seguida abriu a porta. Entraram, molharam assim o assoalho e sujaram o chão, pois suas botas estavam sujas de lama. A casa consistia em 4 salas com dois corredores se entrecruzando. O corredor do meio no qual se encontravam levava a porta dos fundos. Friedrich olhou as outras salas, verificou se seria espaço suficiente. Foram até a porta dos fundos e Czeslaw a abriu e olharam o terreno que havia aos fundos. Não era algo muito grande, mas era um terreno extra:

- Se você quiser cobrir isto para aumentar um pouco o tamanho eu não lhe impeço, e caso faça isto bem feito, lhe abato algo do aluguel. – Diz Czeslaw que tinha sua fama por ser um bom negociante. Friedrich e Czeslaw ficam a discutir o espaço do lugar. Nisto a chuva começa a cessar. Até tal ponto em que caem apenas alguns chuviscos, que tão logo igualmente cessam. O céu permanece nublado, as nuvens ainda contornam os morros que circulam a vila quase que como muralhas, “ainda bem, que esta chuva deu alguma trégua, tomara que não dê enchente alguma”, fala Friedrich, e Czeslaw consente com a opinião de seu colega. Voltam caminhando para pensão, no caminho param no boteco do Rudolf para tomar uma cerveja eles dois, faltavam em torno de meia hora para o almoço, e seria um ótimo aperitivo uma ou duas cervejas em boa companhia. Ruldolf trazia sua cerveja do interior da vila onde ela era produzida por um cervejeiro alemão nascido em Pilsen, e um pouco do vinho vinha de rio acima, produzido pelos italianos e a cachaça é claro, produzida por todos que possuíam moinho. O local tinha vista para o rio, de lá se podia ver o nível do rio, que havia aumentado consideravelmente nos dois dias de chuva.

Terminaram a cerveja e Friedrich acompanhou Czeslaw até a pensão. De lá foi até o porto, precisava de uma balsa para subir rio acima para buscarem o equipamento de Giambatista. Precisava também algum canoeiro disposto a subir o rio o quanto antes para levar o aviso a Giambatista. Teria que redigir a carta em português ou italiano, pois não sabia de nenhum alemão na povoação rio acima. Conversou com Joaquim, um caboclo que era canoeiro e que estava disposto, por uma certa quantia em dinheiro (não muito baixa) a subir o rio assim que um novo dia amanhecesse. Foi correndo até o clube Cultural para conversar com o guarda livros do local, Wagner. Wagner era um homem de letras que estava praticamente na metade de seus estudos em germanistica, quando seu pai se endividou devido a um problema nos negócios, e tiveram que fugir de Tübingen para esta colônia no sul das Américas. Apesar disto tinha uma alta erudição, dominava o italiano e o latim, sabia um pouco do francês (o suficiente, dizia ele) e estava começando a aprender o português. Friedrich conhecia bem Wagner, pois haviam se conhecido já no barco que os trazia para a vila subindo o rio:

- Wagner – ele chamava enquanto batia na porta, sabia que Wagner ficava constantemente ali, cuidando dos poucos livros que o centro cultural tinha – Wagner!

Ele abre a porta, Friedrich entra e se senta na sala de recepção:

- Wagner, meu amado amigo, preciso de uma ajuda sua, preciso enviar um telegrama para Giambatista. É um sujeito que conheci na capital que irá me vender o equipamento tipográfico de seu pai. Preciso lhe enviar uma carta o avisando que já está tudo pronto e que daqui a uma semana estarei subindo o rio com uma embarcação para buscar o equipamento e lhe pagar o valor já combinado. E caso ocorra algum empecilho que ele me envie um telegrama antes de’u subir o rio.

- Oh sim, isto é a respeito da sua nova empreitada, uma livraria e tipografia. Estou ansioso para termos um abastecimento constante de livros aqui em nossa vila. Pretendes montar um jornal também, eu me declaro voluntário para lhe ajudar caso queira esta empreitada.

- Talvez Wagner, eu monte um jornal, pretendo publicar poucas coisas a princípio, pois o equipamento é rudimentar também.

- Oh sim, claro, entendo perfeitamente isto.

Eles dão de ombros e Friedrich começa a ditar a carta. Primeiro Wagner escreve em alemão, depois traduz para o Italiano e com uma ajuda de Friedrich traduz para o português. Terminam a carta, “ainda precisamos conversar a respeito deste possível jornal hein!”, lhe adverte Wagner.

Ele caminha até o porto e entrega a carta a Joaquim. Joaquim falava um pouco de alemão e italiano, o suficiente para poder negociar com os colonos. Além de ter sua canoa também fazia outros serviços náuticos, por vezes como estivador, mas geralmente como marinheiro nos vapores que esporadicamente sobem o rio, consegue sempre alguma boa posição pois sabe se comunicar muito bem no alemão e no italiano, apesar de analfabeto. Numa conversa rápida, é pago metade do valor adiantado para Joaquim e lhe é dado a carta que deverá ser entregue a Giambatista, o dono do secos e molhados da povoação rio acima. Ele lhe promete levar a carta para Giambatista assim que um novo dia nascesse, pois, como ele mesmo diz, “descer é rápido e fácil, agora subir é que é duro e difícil”. O que faz todo sentido quando se leva a correnteza em consideração. A viajem certamente duraria um dia inteiro.

Resolve isto e a passos apresados vai para sua casa, precisava almoçar. Na rua principal, agora uma razoável quantidade de pessoas caminhavam pela rua, todas fazendo o singular barulho do plosh, plosh causado pelo andar de botas na rua lamacenta e sem calçadas, onde o esgoto era democrático com a rua, ou a rua era democrática com o esgoto, a questão é que ambos eram o mesmo espaço.

***

Esta história pretende remontar um Brasil que falava várias línguas, imaginar um pouco do que poderia ser o cotidiano destas pessoas que ali estavam. Temos vários grupos de imigrantes europeus e os caboclos sempre a margem, e no caso da história os índios já foram massacrados e expulsos. É a grosso-modo apenas isto e mais nada: imaginar um Brasil falando várias línguas. Poderia ter optado pelos portugueses em contato com os indígenas, mas devido a conhecer mais a respeito da colonização no sul, assim fiz a história.

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